Experiencias
Por IberCultura
Em25, out 2019 | EmUruguai | PorIberCultura
SACUDE: um espaço comunitário criado e administrado pelos vizinhos e pelo Estado
Na primeira vez que Alba Antúnez foi ao Complexo Municipal SACUDE, na Cuenca Casavalle (onde começa a Montevidéu rural), havia uma escada que dava no alto do que seria a futura quadra de basquetebol. Não havia teto ainda, e ela subiu com uma vizinha para ver como andava a construção do espaço. A vizinha olhou tudo aquilo com alguma surpresa e comentou: “E pensar que fomos nós que fizemos isso…”. Alba nunca esqueceu a cena. “Este é o coração deste projeto: o empoderamento que os moradores têm a respeito deste lugar. Este lugar é deles”, afirmou a coordenadora da Secretaria de Descentralização Cultural da Intendência de Montevidéu, em sua apresentação sobre a experiência de SACUDE durante o 3º Encontro de Redes IberCultura Viva, em Buenos Aires (Argentina).
O SACUDE (o nome vem de SAlud, CUltura y DEporte) é o centro cultural que apresenta o maior desenvolvimento entre os mais de 150 espaços que estão vinculados ao Programa Esquinas de la Cultura, da Intendência de Montevidéu. Localizado no Bairro Municipal, em uma zona que concentra os mais baixos índices de desenvolvimento humano da capital uruguaia, o complexo é administrado por uma comissão de cogestão, integrada por funcionários/as do governo departamental, representantes do Município D e representantes da comunidade, eleitos pelos vizinhos e vizinhas. Todos com o mesmo direito a voz e a voto.
O espaço foi construído em 2010, durante a regularização de três assentamentos da zona: Barrios Unidos, Curitiba e 3 de Agosto. Sua criação foi possível graças ao respaldo de uma ampla maioria de vizinhos e vizinhas, que decidiram que 40% do orçamento destinado à regularização dos assentamentos de Casavalle pelo Ministério de Habitação, Ordenamento Territorial e Meio Ambiente e a Intendência de Montevidéu fossem usados na construção deste complexo. O investimento permitiu a ampliação e adequação das instalações do histórico Club Municipal e da policlínica Los Ángeles, iniciativas que em seu momento também haviam sido concebidas graças ao trabalho da comunidade.
Antecedentes
A história deste espaço comunitário é longa, remonta às décadas de 1940 e 1950, quando o Estado construiu um conjunto de casas para acelerar o processo de ocupação da zona. “O que se construiu ali foi um grupo de casas de boa qualidade, mas muito longe do centro de Montevidéu. Neste lugar supunha-se que viveriam determinadas pessoas, ligadas à Intendência de Montevidéu, mas terminou sendo a residência de trabalhadores das redondezas, de operários que trabalhavam com lã nesta zona”, conta Alba Antúnez.
Como estavam longe do centro de Montevidéu, e seus lugares de trabalho eram próximos de suas casas, os moradores iam trabalhar e voltavam logo ao bairro, e toda a vida ocorria ali mesmo. Além de administrar uma pequena policlínica, com atenção básica (se fosse algo mais sério, iam à “cidade”), eles tinham um salão comunitário onde se fazia tudo, desde as reuniões de vizinhos até os festejos de casamento, os velórios, os batismos… Este Club Municipal, que funcionava graças ao apoio de uma comissão de moradores, tinha inclusive uma tela para a projeção de filmes e um pequeno teatro onde eles apresentavam obras do próprio bairro. “Eles se desenvolveram realmente como comunidade, com valores comunitários, tendo claro o que é o bem comum, sabendo que o que ocorre num lugar é responsabilidade de todos”, observa.
*Vídeo elaborado por um grupo de vizinhos do bairro Municipal, no projeto de TV comunitária Árbol
A crise
Quando começa o período de recessão econômica no Uruguai, na década de 1960, este é um dos primeiros lugares afetados, segundo Alba. “Além dos problemas com trabalho que eles passaram a ter, começam a chegar pessoas da cidade que tinham ficado sem casa, sem trabalho também, expulsos de seus lugares… A zona empobrece, e aquelas casas ficam praticamente sumidas. Criam-se três assentamentos no entorno, e gerações passam a desaparecer, algumas por prisão, outras porque iam embora do país, também pela ditadura, com repressão e mortes. Quando é retomada a institucionalidade no país, se aplica no lugar um plano de reurbanização, para criar novamente o bairro, mas isso é muito difícil do ponto de vista do tecido social”, comenta.
O Plano Cuenca Casavalle, criado em 2009, reúne ações estratégicas que buscam revitalizar a zona, melhorando a qualidade de vida em aspectos como infraestrutura barrial, integração social, segurança, saúde, habitação, emprego e educação. Através deste plano, foram abertas ruas, retiradas as casas mais precárias, entre outras ações decididas em um processo de conversas com os moradores. Quando já tinham resolvido os problemas de saneamento, os vizinhos tiveram acesso a um fundo próprio, para construir o que lhes interessava. E os mais veteranos, basicamente mulheres interessadas em atividades para seus netos, decidiram destinar este fundo para que se construísse a parte cultural do bairro.
Em Casavalle vivem cerca de 80.000 pessoas, o que corresponde a 6% dos habitantes de Montevidéu. Diferentemente do resto do departamento, a população é mais jovem nesta zona: 43% dos residentes são menores de 18 anos e 17% são maiores de 49. “Ali ficaram as avós e os garotos, faltando as gerações do meio”, ressalta Alba. “E estas avós foram se somando para conversar sobre o que queriam para o lugar. Disseram basicamente: ‘Nós sabemos o que um salão comunitário, ao voltarmos a lhe dar vida comunitária, vai significar na vida dos nossos netos. Temos isso muito claro porque vivemos isso e queremos que eles tenham esta oportunidade’. Proposto isso, assim se fez.”
* Videoclipe comunitário de “Cumbia do SACUDE”, realizado por jovens na Usina Cultural Casavalle
Estrutura
O Complexo Municipal SACUDE conta com um ginásio fechado e multifuncional, vestuários, policlínica, salão comunitário e teatro para 500 pessoas, anfiteatro para 100 pessoas, quadra de futebol e um parque aberto de 4.200 metros quadrados. Estima-se em 2.500 o número de pessoas que participam por semana das propostas culturais, esportivas e de promoção da saúde, apropriando-se projeto, transformando-o e enriquecendo-o a partir da cotidianidade.
Nesta experiência que hoje é uma referência em Montevidéu, o orçamento e o aporte de recursos humanos vêm do Estado, mas os integrantes da comunidade são fundamentais para o desenvolvimento do processo. “O mais importante deste projeto é que ali se vive a cultura comunitária. A todos que estão ali, ninguém vai poder lhes dizer que não é possível viver em comunidade, porque eles o fazem com todos os desafios que têm e todas as dores de cabeça cotidianas”, afirma Alba Antúnez.
A Comissão de Cogestão é o órgão máximo de decisão do SACUDE. É formada por três técnicos da Intendência de Montevidéu, responsáveis por cada uma das áreas (saúde, cultura e esporte), três vizinhos eleitos por seus pares, também por cada uma das três áreas, um coordenador de gestão (da Intendência), um representante do Município D e um integrante do conselho de vizinhos. Existe, ainda, uma associação civil de moradores que promove atividades para arrecadar fundos para o complexo (e eles mesmos decidem em que utilizar esses fundos).
Os vizinhos e vizinhas que participam da Comissão de Cogestão são eleitos por toda a comunidade a cada dois anos, e têm igual voz, igual voto, ao resto dos integrantes. “A lógica que se tem aí está longe de ser a lógica institucional. Todos temos que aprender com todos, e é impressionante tudo o que aprendemos com os vizinhos”, destaca a funcionária da Intendência de Montevidéu. “Sem os vizinhos, SACUDE não funcionaria. Eles são parte substantiva da gestão do lugar. Conhecem todas as pessoas que entram nas salas de SACUDE, conhecem eles, suas famílias, seus avós, e têm sua lógica para resolver situações, porque ali passam coisas muito difíceis.”
Histórias
Desde 7 de outubro, o canal do SACUDE no YouTube apresenta vídeos de um minuto com histórias de participantes do complexo, que através de suas vivências retratam a essência do projeto. Esta campanha pensada para redes sociais procura mostrar como eles trabalham com propostas culturais, esportivas e de promoção de saúde, com pessoas de várias idades e priorizando a participação dos vizinhos.
Colo, Elenita, Jhonatan, Yandira, Leticia e Eugenia, os seis protagonistas das histórias, participam de diferentes atividades no complexo, sendo parte de SACUDE não só como usuários, mas também contribuindo com o proyecto de distintos formas. “SACUDE é um lugar que te abre muitas portas. Não de um dia para o outro, mas com o passar do tempo”, afirma Jhonatan, jovem de 22 anos que vive no bairro Gruta de Lourdes e há dois anos frequenta o complexo, também ajudando na recreação e nos treinamentos.
Luis Alberto Viera, o “Colo”, de 48 anos, vive no bairro 22 de Mayo e há quatro anos está no SACUDE, onde costuma a ajudar os professores nas atividades esportivas. “Me tratam bem aqui dentro, porque minha atitude é esta, de respeitar”, conta Colo no vídeo. “Quando comecei a vir, não sabia ler. Estou estudando, aprendendo a ler e a escrever, e gostei. Me coloquei firme nisso porque quero aprender a ler. Com a ajuda da professora, estou aprendendo bastante, estou avançando. Outro dia já estava lendo só, imagine… Me senti bem. O dia de amanhã é sempre bom.”
Elena Oviedo, a Elenita, de 85 anos, residente do bairro Municipal desde 1965, é outra entusiasta do projeto. “Quando soube que era hipertensa, havia uma policlínica aqui perto e comecei a ir. Faz 23 anos que estou nos grupos. Faço academia às segundas e sextas-feiras, tenho manualidades às quartas, tai chi às quartas e sextas, um professor de memória às terças… “, enumera a vizinha, que não desanima nem nos dias de frio. “Vou toda de cachecol!”
As atividades mostradas nos vídeos são financiados pela Intendência de Montevidéu e outros organismos públicos, como o Ministério do Interior, por meio do programa Pelota al Medio a la Esperanza; a Administração Nacional de Educação Pública, que possibilita o programa de alfabetização de adultos, e o Instituto da Criança e do Adolescente do Uruguai, que financia as escolas de basquetebol e futebol feminino.
Atividades
Na programação anual do SACUDE há mais de 50 oficinas vinculadas ao esporte, à cultura e à promoção de saúde. Há atividades em grupos para todas as faixas etárias, a partir de 6 anos. Entre as oportunidades para crianças estão aulas de atletismo, basquetebol, capoeira, karatê, sensibilização cênica, circo, espaço recreativo, futebol feminino, futebol misto, violão, patins, ritmos latinos e teatro.
Para adolescentes e jovens, a programação de 2019 conta com aulas de animação juvenil, atletismo, basquetebol, capoeira, futebol, handebol, ritmos latinos, teatro, trombone e vôlei. Para jovens e adultos, as opções incluem caminhada e musculação, academia, grupo para parar de fumar, oficinas para mães e suas famílias, oficinas sobre gravidez e cuidados com o bebê, teatro e zumba.
No complexo funciona um curso anual de Formação Profissional Básica em Esporte da UTU (a escola de ofícios do Uruguai), a Direção Nacional de Apoio ao Liberado (DINALI) do Ministério do Interior, a rádio comunitária Lengua Libre, além de oficinas de cerâmica para meninos e meninas a cargo de integrantes do Museo de la Memoria.
Saiba mais: www.sacude.org.uy
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Esquinas da Cultura: reconhecendo e apoiando as expressões de cada bairro
Esquinas de la Cultura: con los aromas, los sabores y los saberes del barrio (por Alba Antúnez) – Texto publicado en el libro Puntos de cultura viva comunitaria iberoamericana
⇒Veja o vídeo da apresentação de Alba Antúnez no 3º Encontro de Redes IberCultura Viva (a partir de 1’06’’): https://www.facebook.com/iberculturaviva/videos/2097231490569360/
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A Intendência de Montevidéu é integrante do Grupo de Trabalho de Governos Locais formado em 2017, em Quito, no 2º Encontro de Redes IberCultura Viva.