Experiencias
Por IberCultura
Em14, out 2015 | EmPeru | PorIberCultura
Vichama: o teatro como afirmação da identidade coletiva
“Se a cultura fosse entendida apenas como um produto, sinônimo de modernização ou negócios, as pessoas ficariam fora de cena.” César Escuza sabia bem o que dizia quando afirmou isso no lançamento do programa Pontos de Cultura no Peru, em agosto de 2012. O Vichama Teatro, grupo que ele criou em 1983 em Villa El Salvador, em Lima, tem demonstrado na prática que cultura viva não é algo que se inserta, que se instala, e sim “algo que é, que está e vive com a comunidade”. Algo que põe as pessoas dentro da cena, em todos os sentidos.
“Colocar as pessoas em cena é falar de seu protagonismo a partir dos territórios, de sua autonomia, de empoderamento e desenvolvimento cultural ético, estético e econômico”, reforça o diretor teatral, pedagogo e gestor cultural que propõe um teatro estreitamente ligado ao contexto social e político da comunidade, como uma afirmação da identidade coletiva. Afinal, quando se tira da sociedade suas ferramentas mais preciosas, sua autonomia e seu protagonismo, o que resta? Qual é o sentido?
Nascido em Huancayo, a 300km da capital peruana, César Escuza passou grande parte da adolescência fugindo do palco devido a uma experiência desagradável: aos 11 anos, lhe deram o papel de soldado ferido, justo a ele, que havia tido poliomielite. Depois de muito tempo, decidido a enfrentar o trauma, ele se apresentou a uma escola para estudar atuação. Não o aceitaram. Então ele mesmo inventou uma porta para abrir. Criou um grupo de teatro, virou diretor e encontrou “uma maneira de viver”. E passou a se perguntar, com um largo sorriso, se deveria ou não agradecer ao professor que teve a má ideia de lhe dar o papel de soldado ferido. Talvez, se não houvesse passado pela crise, não haveria descoberto o que o move.
Primeiros tempos
Fundado em 20 de junho de 1983, o grupo começou como um laboratório de teatro em Vila El Salvador, parte de um curso de artes cênicas do Centro de Comunicação Popular. Em 1993, assumiu o nome Vichama e desde então tem conseguido consolidar alguns espaços fundamentais para suas ações: o laboratório de teatro, o centro cultural e a escola de alfabetização intercultural.
No laboratório, eixo central do grupo, vêm sendo formadas gerações de atores e surgido dezenas de espetáculos que têm dado a volta ao mundo. No centro cultural, uma média anual de 30.000 pessoas assistem a apresentações de teatro, narração de contos, títeres, circo, dança, música e cine, entre outros. A escola de alfabetização intercultural, por sua vez, desenvolve um trabalho pedagógico emancipador de arte-educação com as crianças e adolescentes de diversas comunidades.
Atualmente, faz parte do projeto uma equipe permanente de 10 a 12 pessoas (jovens e adultos). Assim, com a participação ativa de uns 25 jovens e cerca de 40 crianças, eles cumprem e desenvolvem seus objetivos e ações: a criação e difusão de obras de teatro, os cursos formativos dirigidos a crianças, jovens, docentes, ativistas culturais, vizinhos da comunidade, e também seus trabalhos de autogestão.
Para Vichama, o teatro é um “laboratório de vida”, um espaço de criação, “um espaço que permite meditar e atuar sobre a história”. O grupo vê a arte como uma maneira de estar no mundo, como um meio para transformar as relações humanas. “Nossa arte implica ativamente a comunidade para que reflita sobre seus valores, sua identidade e os meios para atuar sobre ela”, afirma o grupo (no site www.vichama.org), sobre sua busca por um teatro “visionário, sanador, pedagógico, transformador, que contribua a recuperar o que de humano estamos perdendo”.
Três perguntas para César Escuza
1.Quando se deu conta de que era fundamental trabalhar na comunidade, com a comunidade e para a comunidade? Sempre teve a consciência de que o teatro era uma maneira de fazer parte da comunidade, não apenas para representar, e sim para se expressar?
Venho de uma região onde o sentido de comunidade, de pertencer, de atuar em comunidade, é parte da vida da gente (a região de Junin, Huancayo). E ao chegar a Vila El Salvador, encontrei uma comunidade urbana de autogestão, um dos espaços de encontro intercultural – de nossas culturas quechuas, aimaras, e amazônicas –, com que me identifiquei rapidamente. O que o teatro fez, de certa maneira, foi expressar este pertencimento, este sentido comunitário. E também fez de mim um homem de teatro, que se expressa e constrói a partir do teatro em comunidade.
2.Vi um vídeo em que conta seu começo no teatro, o desejo de ingressar em um grupo e a negativa que recebeu, devido a uma deficiência física. Construir essa possibilidade na vida era algo que lhe parecia fundamental?
Devo precisar que não era “ingressar” em um grupo, e sim postular a um centro de estudos profissionais para estudar teatro. Mencionaram que, por minha condição física, era impossível, me foi negada essa possibilidade. O que fez com que eu me reafirmasse na necessidade de trabalhar no teatro de grupo e na relação permanente com as comunidades.
3.Em agosto, quando esteve no Encontro Ajayu, em São Paulo, você disse que se sentia alimentado, nutrido, cada vez que se encontrava com os “irmãos em cultura viva”. É isso o que o motiva a seguir lutando, a conexão com outras pessoas, comunidades, estados, nações?
Participar de um encontro de Cultura Viva Comunitária e da Rede Latino-americana de Teatro em Comunidade, que agrupa a dezenas de grupos de teatro e da qual somos fundadores e membros, nos alimenta, nos fortalece e impulsa para seguir sonhando, criando, compartilhando e empoderando nosso trabalho em comunidade. Estes encontros nos enraízam mais e nos vinculam a outras raízes irmãs, que nos nutrem e com as quais compartilhamos nossa experiência. Crescemos para baixo fortalecendo nossas raízes, o que nos permite crescer de maneira mais diversa, firme e sustentável. Somos uns convencidos e convencidas de que atuando em rede, se potencializa e se multiplica nosso trabalho e o de nossos aliados, o que nos tem permitido que nossa experiência se multiplique em nossa comunidade e em outras que também têm feito as suas, com suas próprias particularidades e identidades.
(**Texto publicado em 14 de outubro de 2015)
Assista ao vídeo em que César Escuza fala sobre o Vichama Teatro
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