Experiencias
Por IberCultura
EnEm 14, fev 2022 | Em Paraguai | Por IberCultura
El Cántaro BioEscuela Popular: transformação social através da arte, da cultura e da aprendizagem coletivo
Há uns anos, em uma visita ao Centro Cultural Alternativo (CECUAL) em Resistencia (Chaco, Argentina), Joe Giménez e Gustavo Díaz descobriram um mundo. Conhecendo os espaços culturais do bairro, bibliotecas populares e comunitárias, cinema e teatro comunitário, circos e escolas populares, grafiteiros, intervenções urbanas, músicos e artistas com ênfase social, dialogando ali em seus territórios, os diretores do El Cántaro BioEscuela Popular descobriram que o que faziam no Paraguai tinha um nome e um movimento latino-americano: Cultura Viva Comunitária.
“Descobrimos uma rede mágica de companheiros e companheiras que, por meio da arte e da cultura, resgatavam a memória coletiva, onde nossos avós que viveram a colonização voltavam a dizer ‘aqui estamos e devemos aprender a viver fazendo’, ressurgindo nossa origem, respeitando nossa Mãe Terra, nossa Abya Yala. Descobrimos que fazíamos parte de uma Rede de Cultura Viva Comunitária, que se articula como rizomas nas profundezas de nossos territórios, para arejar solos e mentes e nutrir corações com música, magia e poesia”, lembra a fundadora do El Cántaro.
Criada em 2007 em Areguá (Paraguai), El Cántaro BioEscuela Popular é uma comunidade de aprendizagem que visa a transformação social por meio da arte, da educação crítica e da cultura, oferecendo oficinas criativas populares e atividades socioculturais de acesso gratuito a centenas de crianças, jovens e adultos. Atualmente, são oferecidas cerca de 70 oficinas gratuitas por ano, um trabalho que envolve aproximadamente 600 famílias.
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De volta ao programa
A organização comemora 15 anos de trabalho comunitário ininterrupto em 2022, ano em que também comemora o primeiro ano de implementação do programa Pontos de Cultura no Paraguai e o retorno do país às atividades do IberCultura Viva. O Paraguai foi um dos primeiros países a aderir ao IberCultura Viva e esteve presente no Conselho Intergovernamental até 2016. Desde dezembro de 2021 voltou ao programa, inicialmente como país convidado pelo período de um ano.
El Cántaro desempenhou um papel importante nesse processo de retomada do vínculo entre o governo paraguaio e o programa IberCultura Viva. Nos últimos cinco anos, desde que começaram a se “nutrir” da rede latino-americana de Cultura Viva Comunitária, Joe Giménez e Gustavo Díaz têm participado de reuniões com ministros da Secretaria Nacional de Cultura, apresentado a experiência da bioescola, proposto encontros com representantes de espaços e centros culturais e articulado a criação de uma rede paraguaia de organizações culturais comunitárias.
Joe Giménez conta que em 2016, ao retornar ao Paraguai daquela viagem à Argentina, ela e seu parceiro Gustavo (com quem compartilha a direção do El Cántaro) buscaram criar espaços de convivência, debater o papel da cultura comunitária viva e influenciar políticas públicas que contemplem a cultura viva. “Tivemos algumas tentativas de iniciar a articulação da nossa rede local, mas o solo ainda não estava fértil para que ela se enraizasse. No entanto, as sementes têm memória e paciência para brotar na hora certa”, comenta.
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Em maio de 2019, de volta à Argentina, Joe e Gustavo participaram do IV Congresso Latino-Americano de Cultura Comunitária Viva, onde apresentaram o documentário “Voces de Barro” no Espaço Cultural Julio Le Parc, em Mendoza. Realizado por Tania Paz (Chile) em 2017, por ocasião dos 10 anos de El Cántaro BioEscuela Popular, este documentário conta a história da escola por meio das vozes dos protagonistas: alunos, diretores, mães e pais da comunidade e aliados.
“Quando voltamos do encontro em Mendoza, tínhamos fortalecido ainda mais nosso pertencimento ao trabalho que já vínhamos fazendo desde El Cántaro e percebemos que para sermos mais fortes tínhamos que nos juntar a mais companheiros e companheiras do Paraguai”, diz Joe.
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Intercâmbio de saberes
Com base na experiência vivida no congresso na Argentina, eles decidiram realizar uma série de círculos da palavra que chamaram de “Intercâmbios de Saberes para a Gestão Cultural Comunitária“. A iniciativa, desenvolvida em parceria com o Centro Cultural Juan de Salazar da Espanha (Paraguai), foi declarada de interesse pelo IberCultura Viva e contou com o apoio de vários grupos e espaços culturais da região. “(O evento) nos deu mais um impulso e fez com que mais grupos, coletivos e artistas olhassem para o comunitário e percebessem que somente nos juntando venceremos um sistema que nos quer separados”, observa.
Emiliano Fuentes Firmani, secretário técnico do IberCultura Viva, e Diego Benhabib, coordenador do programa Puntos de Cultura na Argentina e representante da vice-presidência do IberCultura Viva, participaram dos intercâmbios promovidos pelo El Cántaro e também acompanharam os preparativos dos encontros. Foi durante uma dessas reuniões que comentaram sobre a possibilidade de o Paraguai receber um convite do Conselho Intergovernamental para participar do programa por um ano como país convidado.
“Acreditamos que esta decisão por parte do programa se deve ao fato de que eles viram em nós o compromisso e o desejo de realizar mudanças reais a partir do fortalecimento da cultura viva em nível local”, ressalta Joe. “Hoje o Paraguai volta a fazer parte do IberCultura Viva e nosso compromisso como organizações da sociedade civil é aproveitar ao máximo a oportunidade, além de sermos controladores de que, findo o ano do convite, nosso setor se fortaleça para que continuemos fazendo parte, como Estado paraguaio, já como membros ativos do programa”.
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Retomada dos Pontos de Cultura
Em 2020, uma das iniciativas promovidas pela Secretaria Nacional de Cultura foi a criação de uma mesa técnica de cultura viva comunitária, de onde vem trabalhando com diversos agentes, de diversas partes do país, indicando as necessidades do setor. El Cántaro faz parte desta mesa instalada para refletir e fazer com que a sociedade civil seja ouvida pelo Estado. “Desde nossa integração nesta mesa discutimos e compartilhamos a importância de o Paraguai adotar políticas públicas que facilitem o trabalho cultural comunitário nos territórios”, afirma a diretora da bioescola.
A retomada do programa Puntos de Cultura foi uma das estratégias apresentadas para a reativação do setor cultural diante da pandemia de Covid-19, de forma a fortalecer e garantir a sustentabilidade dos espaços e centros culturais comunitários. Joe Giménez lembra que este programa tem suas origens em 2012, durante o governo de Fernando Lugo, mas foi interrompido e, segundo ela, “agora renasceu muito mais forte”. Uma primeira chamada pública, lançada pela Secretaria Nacional de Cultura em abril de 2021, teve 27 Pontos de Cultura selecionados. Um deles foi El Cántaro BioEscuela Popular.
“Pareceu-nos importante participar (deste primeiro edital), pois há anos sonhávamos com esse modelo de política pública para o nosso país. Já havíamos aprendido mais sobre o significado dos Pontos de Cultura através do livro que nos foi doado pela RGC Ediciones, sobre os Pontos de Cultura no Brasil (Puntos de Cultura: Cultura Viva en Movimiento, de Célio Turino). Este livro nos alimentou por muito tempo para aprender com um modelo de que a cultura já existe nas comunidades e não é preciso levar cultura para lugar nenhum, e sim regar o que já está acontecendo nos territórios”, afirma Joe.
Para ela, no Paraguai ainda há uma confusão entre gestão cultural comunitária e gestão cultural em geral: “Ainda existe aquela prática de levar cultura para o povo e dar cultura, de um lugar de poder. Levar concertos para o interior, levar obras a todo momento, sem se dar conta dos processos. É mais fácil reunir as pessoas para um concerto e gastar um orçamento inteiro em um festival de uma noite, enquanto com o mesmo orçamento você pode abrir escolas de arte ou de música para que os shows sejam da própria comunidade e não trazidos de outros lugares. Existem centros culturais, mas eles colocam as artes plásticas ou a economia laranja como objetivo principal, e não o empoderamento e envolvimento de suas comunidades”.
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Envolvimento comunitário
No El Cántaro, um dos ensinamentos mais importantes e constantemente compartilhados é o de se envolver com a comunidade. A organização iniciou sua trajetória em espaços públicos, depois se instalou em locais alugados e desde 2012 vem construindo seu próprio espaço com técnicas de bioconstrução e com o apoio e acompanhamento da comunidade.
Além de uma biblioteca popular com mais de 3 mil volumes, aberta à comunidade de quarta a sábado, a organização conta com o “Almacén de Arte”, com uma seleção de arte popular, indígena e arte contemporânea, que ajuda na manutenção do espaço. A ideia é que a bioescola seja autossustentável por meio dos produtos e serviços que oferece à comunidade e seus visitantes.
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Entre as mais de 150 oficinas gratuitas oferecidas nesses quase 15 anos de experiência estão serigrafia, percussão, violão (popular e clássico), canto popular, canto e vocalização, linguagem musical, oratória, informática, robótica, cerâmica, mosaicos, culinária, dança criativa, circo social, cinema comunitário, horta orgânica, oficinas ambientais e oficinas de liderança juvenil. El Cántaro conta com o apoio da Fundação Itaú, que facilita a gratuidade das atividades.
Além do Ciclo de Oficinas Criativas Populares, a organização tem promovido ao longo de sua trajetória atividades socioculturais de acesso gratuito, como teatro, teatro de bonecos, shows educativos, cinema ambiental, clube de flamenco, oficinas de férias de verão e inverno, palestras e feiras. Pessoas da comunidade também deram voluntariamente alguns workshops abertos, sobre temas variados, desde cestaria de bambu e encadernação até educação sexual, pintura corporal, fotografia para crianças ou mandalas para gerenciar emoções.
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Atividades durante a pandemia
Devido à pandemia de Covid-19, as atividades do Cántaro foram reduzidas em quantidade, e os grupos de participantes têm um limite, tendo em conta o espaço disponível e os protocolos sanitários. A bioescola ficou fechada em 2020, primeiro ano da pandemia, mas algumas ações de apoio reforçaram os laços de solidariedade dentro da comunidade, já que muitas das famílias ficaram praticamente sem renda.
Uma dessas ações foi a campanha #MascarillasParaTodxs, em que membros da comunidade do Cántaro se reuniram para confeccionar máscaras caseiras para quem não as tinha. Uma de suas maiores conquistas nos primeiros meses da emergência sanitária foi a confecção coletiva de 2.200 máscaras, feitas com as mães dos alunos de El Cántaro. Essas máscaras foram entregues em bairros, pontos de ônibus e copas gratuitamente.
Outras campanhas solidárias realizadas foram a “Biblioheladera”, uma geladeira recheada de livros, na calçada de Cántaro, onde qualquer pessoa podia passar para deixar ou procurar livros do seu interesse gratuitamente, e o “Roupeiro Comunitário”, também na rua, onde pessoas podiam pegar e deixar casacos (uma ideia inspirada nos amigos de La Comunitaria). A organização também ofereceu apoio às “panelas populares”, que foram o pilar de muitas famílias durante a pandemia, e participou da entrega de kits de alimentação à comunidade.
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O lançamento do Barrofonico, um meio de comunicação comunitário e colaborativo criado como o primeiro Banco de Histórias em Areguá, também foi uma iniciativa do El Cántaro BioEscuela Popular realizada durante a pandemia. A intenção é oferecer um espaço e ponto de união para o diálogo de vozes, histórias, músicas, entrevistas e paisagens sonoras de Areguá para a comunidade. Em sua primeira etapa de criação, Barrofonico contou com o apoio da Secretaria Nacional de Cultura.
Além disso, El Cántaro lançou ”Patrimonios – Por Los Caminos del Barro”, iniciativa que busca sensibilizar a população mais jovem sobre o patrimônio cultural, histórico, natural e vivo de Areguá. O projeto, focado na vida dos artesãos locais e seu legado como patrimônio cultural vivo, é um projeto conjunto com a Comissão de Moradores do Bairro Histórico de Areguá, com financiamento do Instituto Paraguaio de Artesanato por meio do concurso ”Fundo para o Artesanato Paraguaio” (ano 2020).
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A integração e fundação da #RedEsSur como rede regional de Espaços Culturais do Sul, com algumas apresentações conjuntas em 2020, foi outra das ações realizadas durante a pandemia. Além da RedEsSur e da Rede Latino-americana de Cultura Comunitária Viva (participando do Círculo da Palavra de Educação Popular), El Cántaro integra outra rede internacional, a Rede de Educadores Populares, e em nível local faz parte do Observatório Educacional Cidadão, juntamente com outras organizações.
Nesta entrevista por e-mail ao programa IberCultura Viva, Joe Giménez diz que embora a ideia de integração com outras redes não estivesse em suas ideias inicialmente, eles perceberam “o poder da troca de conhecimento que acontece quando pensamos e trabalhamos em redes”.
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Três perguntas para Joe Giménez
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1. Você é educadora, formada em Mediação Cultural… Sempre teve a ideia de trabalhar da/com/para a comunidade?
Quando criança, eu achava que a cultura era apenas observar de longe como os outros podiam dançar no palco, tocar um instrumento, e ser apenas um observador passivo. Sempre amei arte, sabia que algo na minha vida estaria relacionado a isso. Estudei na Escola de Belas Artes até o quarto ano, mas senti que meu lugar não era estar lá competindo, pensando no meu trabalho, na minha técnica, na minha exposição (além disso, eu não era boa nem pintando nem desenhando). Quando tive a oportunidade de ir para a França estudar por um ano, ousei mudar de carreira. Sempre busquei uma arte que trabalhasse com as pessoas, uma arte que olhasse para as pessoas e as tornasse parte dela, transformando suas vidas, e não apenas buscando observadores.
Quando terminei a licenciatura em Mediação Cultural, que foi uma mudança radical para mim em relação a tudo o que conhecia no meu país, tive de escrever uma tese. Ali, a única coisa que fiz foi fechar os olhos e imaginar tudo o que queria ter uma geração de jovens como eu, que cresceu sem saber o que era uma biblioteca, que não tínhamos acesso a tocar um instrumento, que nunca pisamos um teatro; que achávamos que o acesso à cultura era um privilégio e não um direito, um direito que seria uma ferramenta transformadora para nós.
Sou formada em Mediação Cultural, me sinto uma educadora popular, junto com meu companheiro, Gustavo Diaz, que se juntou ao projeto BioEscuela alguns anos depois e ajudou a ampliar ainda mais o horizonte inicial do projeto, que hoje não é mais um projeto pessoal, mas de toda uma comunidade.
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2. Como a pandemia afetou o trabalho da organização? Teve que cancelar todas as atividades, conseguiu retomar a maioria delas ou ainda não?
Durante 2020, um período difícil apesar da pandemia, conseguimos – com o apoio de nossa comunidade – continuar com o distanciamento físico, mas não o distanciamento social. O contexto global e local nos chamou à ação e respondemos da melhor forma possível com o esforço conjunto de nossas famílias do Cántaro.
Um dos valores que fazem parte da nossa filosofia como BioEscuela Popular é a empatia e o apoio mútuo. Isso se refletiu ao longo desses anos, mas no início da pandemia tivemos força suficiente para poder colaborar entre as famílias dos alunos da nossa BioEscola. Essas ações geraram um valor incalculável da comunidade para El Cántaro e temos feito parte de uma grande obra de arte comunitária em que cada um ajudou como pode.
Durante o ano de 2020, devido às restrições sanitárias, as portas do El Cántaro estiveram fechadas, mas trabalhamos com ações como campanhas de apoio mútuo (#MascarillasParaTodxs, BiblioRefrigerator, Roupeiro Comunitário, entre outras), e embora essas campanhas tenham sido fundamentais, um dos pontos fortes foi que a Biblioteca Comunitária foi reforçada e o número de empréstimos de livros aumentou acentuadamente em comparação com anos anteriores.
A comunidade de El Cántaro é formada por pessoas que em sua maioria não possuem computador em suas casas ou às vezes têm só um telefone celular. Por isso, as aulas virtuais não foram uma opção para El Cántaro e focamos em campanhas de apoio mútuo e no fortalecimento de empréstimos para bibliotecas.
Atualmente, desde 2021, a BioEscuela reabriu as suas portas e está recebendo estudantes de música seguindo protocolo sanitário de distanciamento.
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3. Em 2021, El Cántaro organizou o seminário “Intercâmbio de Saberes para a Gestão Cultural Comunitária”, que contou com a participação de pessoas do Paraguai, Equador, Bolívia, Argentina, México e Colômbia. Esses encontros tiveram bons resultados?
Foi a quarta vez que realizamos esta série de encontros desde a nossa descoberta, em 2016, do Movimento Cultura Viva. Mas, sem dúvida, esta foi a que teve maior impacto e participação.
Conseguimos gerar um espaço de troca multidirecional de conhecimento (ou círculos de palavras) para fortalecer o conceito de cultura comunitária viva nas práticas locais de gestão cultural, compartilhando a experiência do Movimento Latino-Americano de CVC e aprofundando práticas e experiências de referentes e organizações. Juntos conseguimos gerar um grupo de trabalho e construir uma identidade coletiva de organizações, grupos e/ou agentes culturais que pretendem trabalhar a cultura em nível comunitário em nosso país. Assim como grupos e indivíduos que realizam trabalhos de cultura viva, mas que não têm consciência de que o trabalho que realizam em seus territórios faz parte de uma forma de trabalho cultural com foco comunitário.
Esta série de encontros, em que pudemos ouvir experiências locais e internacionais, foi algo muito valioso e significativo para nós que participamos. Escutar a experiência dos compas do Teatro Trono, da Comunitaria de Argentina, do Cecual e outras iniciativas têm sido uma maneira de compartilhar outras formas de trabalho cultural comunitário que mostram uma forte identidade territorial, onde todos somos portadores de cultura e ninguém pode nos trazer ou vir nos dar cultura, mas simplesmente compartilhar.
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(Fotos e vídeos: El Cántaro BioEscuela Popular)
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(*) Texto publicado em 14 de fevereiro de 2022
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Confira o documentário sobre El Cántaro, dirigido por Tania Paz:
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Saiba mais sobre El Cántaro:
https: / /www.elcantarobioescuelapopular.com
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Leia também:
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El Cántaro de Areguá: um projeto com conteúdo sociocultural
Ministro da Cultura destaca a iniciativa da Bioescola Popular El Cántaro de Areguá
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EnEm 22, mar 2016 | Em Paraguai | Por IberCultura
Artesanas de la Palabra: a narração oral cênica e a revitalização do “ayvu”
Don Felix de Guarania, uma referência da cultura originária paraguaia, um dia disse à narradora de histórias Laura Ferreira: “Tomara que entre seus objetivos como ‘cuentera’ esteja a revitalização do ayvu”. Ainda que seja comum escutá-lo com referência a ruído ou a pessoa barulhenta, o termo etimologicamente vem de ‘ã’, alma, e ‘yvu’, manancial”. “Quando um nativo chegava a um lugar, dizia: “Agueru che ayvu” (‘Trago minha palavra’, em guarani)”, explica a contadora de histórias. A palavra era, portanto, “o manancial que brota da alma”. E é esse ayvu originário que o grupo Artesanas de la Palabra, coordenado por Laura, tenta revitalizar.
O coletivo Artesanas de la Palabra sustenta desde 2010 espaços de rodas de contos infantis em editoras, livrarias e bibliotecas. Tendo em conta que as tradições dos povos originários do continente latino-americano têm sido transmitidas mediante a palavra, de geração em geração, o grupo tem a missão de seguir com esta oralidade não apenas para a preservação dos relatos orais, mas também de seus princípios e valores, da coesão de uma identidade cultural.
Os eixos de trabalho estão baseados na reflexão teórica, na formação e profissionalização em arte, cultura e educação, contribuindo assim para a difusão e o fortalecimento da narração oral cênica. Nos espetáculos, de acordo com a temática e as histórias escolhidas, são utilizados mamulengos, músicas, instrumentos musicais, livro-álbum e outros elementos cênicos.
Durante quatro anos eles têm narrado contos para crianças semanalmente em uma livraria, quinzenalmente em uma biblioteca, e mensalmente em outras duas livrarias. Para os adultos apresentam espetáculos quinzenais em diferentes espaços, na modalidade de Café Concerto, em bares e cafés literários, com uma média de 30 a 40 pessoas por sessão.
Também têm projetos em praças de bairros, instituições educativas da capital e do interior do país. Quando realizam espetáculos em instituições educativas, o público pode chegar a 500 ou 700 crianças. Os espetáculos já passaram por cidades como Asunción, Concepción, Villarrica, Pedro Juan Caballero, Encarnación, Itaugua, Benjamin Aceval, Remansito e Ciudad del Este.
Ofício e vida
“Contar contos é nossa forma de vida, não é um passatempo. É ofício e vida”, afirma Laura, que é neta de José L. Melgarejo, um grande nome do teatro popular paraguaio, e diz reconhecer no sangue a arte (”Sangue não é água”). “Estudei atuação e trabalhava como atriz quando conheci a narração oral. E descobri uma emoção diferente em cena. Senti que meu sonho de sentir a função social da arte, com os contos, se tornava mais real.”
Laura entendeu que com a palavra podia trabalhar com crianças, jovens, adultos. Em bairros, praças, bares, teatros, colégios. E realizar sua opção de vida, a narração oral cênica. Hoje, é essencialmente uma narradora de contos e gestora cultural. Eventualmente, continua trabalhando como atriz. Formou-se em ciências da educação, é professora de língua guarani e teatro escolar.
Além de coordenadora do coletivo de educação e arte Artesanas de la Palabra, Laura Ferreira é integrante da “Red Latinoamericana de Cuentería Oralidad y Memoria de los Pueblos” e membro da “Red Internacional de Cuentacuentos”. Também coordena um ciclo de oficinas de narração oral cênica no Paraguai e desde 2009 dirige o Encontro Internacional de Oralidade –“La patria que late en mí”.
A festa da palavra
O Encontro Internacional de Oralidade é feito de uma semana de espetáculos diversos e oficinas de capacitação, tanto na capital como em cidades do interior do Paraguai. Recebe representantes de no mínimo quatro países, chegando a ter oito países representados e quase 14 narradores internacionais. “É a festa da palavra. A gestão é um tanto difícil, pois os apoios nem sempre são o esperado, mas sim, é um evento que nos desafia a cada ano”, ressalta Laura.
Entre alguns dos projetos mais especiais que tem coordenado estão a revitalização da memória oral de mulheres indígenas (Nivacle e Toba); assim como os trabalhos com mulheres de terceira idade de bairros marginalizados, mulheres docentes do interior do país e mulheres com deficiências, com quem tem trabalhado também questões de gênero. Laura conta que inicialmente as Artesanas de la Palabra eram apenas mulheres e que hoje em dia há dois homens na equipe, embora não tenham mudado a denominação do coletivo.
Com os contos ela tem representado o Paraguai em festivais e encontros de narração oral e gestão cultural em Argentina, Uruguai, Bolívia, Brasil, Cuba, Chile, Colômbia, México e Espanha. Em 2016, a turnê internacional incluirá La Plata (Argentina), Colômbia, Chile e Uruguai.
As oficinas literárias
Atualmente, além de seguir narrando contos em livrarias, bibliotecas e instituições educativas, o coletivo Artesanas de la Palabra assume outro desafio: os cursos literários para crianças de 7 a 11 anos. Outro projeto que eles estão levando adiante está relacionado ao turismo, como ‘guias turísticos narradores’. “Acompanharemos os guias narrando histórias, mitos e legendas. É algo inovador, serão saídas temáticas. E também estamos trabalhando na futura Escola-Laboratório de Narração Oral Cênica do Paraguai”, adianta Laura.
Em 2015, em parceria com a Asociación Proyectos Culturales para el Desarrollo de Argentina, o coletivo Artesanas de la Palabra desenhou o projeto “Mainumby – Vozes, tradição e memória oral ibero-americana”, que busca resgatar a narração oral em línguas originárias com o apoio das tecnologias. “Nos propomos reunir narrações orais em suas línguas originais e colocá-las a serviço da comunidade por meio de um website. Esta audioteca seria a primeira do tipo na América Latina e estamos trabalhando para conseguir financiamento para que logo seja uma realidade”, comenta a coordenadora.
Para ela, os resultados do trabalho do coletivo já podem ser vistos e são gratificantes. São os meninos que cresceram escutando os contos e hoje são integrantes de academias literárias, ou que estão contando histórias junto com a equipe de Artesanas de la Palabra. E os intercâmbios entre narradores nacionais e internacionais que vão se aparecendo cada vez más. “A palavra vai cruzando fronteiras e nos ajuda na etapa de profissionalização”, afirma a artista que fez da narração de contos seu oficio e vida, e sim, faz todo para revitalizar o ayvu, “o manancial que brota da alma”.
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