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Coletivo Justina: um Ponto de Cultura na fronteira entre a ancestralidade e o comunitário Coletivo Justina: um Ponto de Cultura na fronteira entre a ancestralidade e o comunitário Coletivo Justina: um Ponto de Cultura na fronteira entre a ancestralidade e o comunitário Coletivo Justina: um Ponto de Cultura na fronteira entre a ancestralidade e o comunitário Coletivo Justina: um Ponto de Cultura na fronteira entre a ancestralidade e o comunitário 

Por IberCultura

EnEm 09, dez 2022 | Em | Por IberCultura

Coletivo Justina: um Ponto de Cultura na fronteira entre a ancestralidade e o comunitário 

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Fundado em 2016, o Ponto de Cultura Justina é um coletivo de arte comunitária e ancestral que tem sede em Aparecida de Goiânia (Goiás) e se articula em rede com artistas e grupos de diferentes regiões brasileiras e de países da América Latina. Nos últimos anos, o coletivo realizou atividades de formação, pesquisa e circulação artística nos estados de Goiás, Ceará, Maranhão, São Paulo e Minas Gerais e no Distrito Federal. Também passou por intercâmbios de experiências com grupos comunitários, escolas, universidades e associações de moradores na Argentina, no Equador, na Bolívia e no México. 

Um dos intercâmbios mais recentes resultou num espetáculo chamado 1888, uma coprodução com o grupo de teatro El Masticadero, de Cochabamba (Bolívia). A obra, escrita por Takaiúna, atriz, arte-educadora e fundadora do Coletivo Justina, tem direção da boliviana Claudia Eid Asbún e gira em torno de uma mulher preta, curandeira, que vive em 1888 (ano em que formalmente se aboliu a escravidão no Brasil) e, com suas ervas, busca curar a si mesma, as gerações passadas e futuras. Seu nome? Justina.

Vem da bisavó de Takaiúna o nome que batiza a personagem do espetáculo e também o Ponto de Cultura. Maria Justina da Glória foi a matriarca da segunda geração da família pós 1888. O coletivo que a homenageia nasceu durante o projeto de pesquisa e extensão “Memórias de nossa infância negra”, na Universidade Federal de Goiás. Nesse projeto, Takaiúna se juntou à mãe, Brazimar Rodrigues, para a criação de uma oficina que tinha como ponto alto a contação de histórias africanas. Takaiúna era quem contava as histórias com bonecos feitos por Brazimar especialmente para essa oficina, desenvolvida em várias escolas e instituições nos anos de 2016 e 2017.

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Experiências ibero-americanas

As bonecas que aparecem no curta Ancestralidade, um dos vencedores do concurso de vídeo lançado pelo programa IberCultura Viva em 2020, também foram confeccionadas por Brazimar. Num exercício de reconstrução de uma memória-história afro-brasileira, Takaiúna saúda a força feminina que transcende espaços, tempos, territórios e que vem transmitindo saberes, nesse vídeo em que as bonecas representam não só Justina, mas também as mulheres negras que a antecederam e as que chegaram depois.

Em 2020, além de entrar na lista de ganhadoras do concurso de vídeo do programa com Ancestralidade, Takaiúna representou o Coletivo Justina no 4º Encontro de Redes IberCultura Viva, como uma das convidadas do conversatório “Educação popular, arte e transformação social”. Sua participação está registrada no livro “Redes en la red: Relatos del 4º Encuentro de Redes IberCultura Viva”, organizado pela Alcaldía de Medellín (Colômbia) e lançado pelo programa em outubro de 2022, durante o 5º Congresso Latino-americano de Cultura Viva Comunitária. 

Takaiúna (abaixo, de óculos) no conversatório “Educação popular, arte e transformação social”

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Com a boca aberta

Na publicação, que reúne trechos do conversatório realizado por videoconferência em 22 de setembro de 2020, Takaiúna fala da importância de contarmos nossas histórias, e de como os artistas em comunidade constroem suas dramaturgias. “As ruas, os muros, as cidades também necessitam nossa forma de pensar e de ver o mundo. É uma ação comunicadora. Necessitamos estar com a boca aberta, cantando, interpretando nossos textos, sempre com a boca aberta”, diz a fundadora do Coletivo Justina.

Em sua intervenção no 4º Encontro de Redes, ela contou que aprendeu o significado da palavra “corpo” quando tinha 12 anos, no dia em que seu irmão chegou em casa dizendo que o pai e o tio haviam encontrado o corpo de um homem na fazenda onde trabalhavam. Bem que eles tentaram dissuadir a menina, dizendo que ele cheirava mal e tinha a boca aberta, mas ela insistiu, chorou, suplicou para que a levassem ao velório, porque queria a todo custo ver o corpo. Queria sentir o mau cheiro, ver a boca aberta.

“Quando enfim pude ver o corpo, a boca aberta, fiquei imaginando que o homem falava quando morreu. Pensei nas palavras que podiam ser ditas com a boca totalmente aberta, e fiquei tentando emitir sons, mas sabia que não podia encontrar nenhuma palavra diante da minha mãe e voltamos em silêncio para casa. (…) Conto essa história porque sabemos que outras pessoas estavam de boca aberta. Estavam delatando, gritando, cantando, quando foram alcançadas brutalmente pela morte. Essas pessoas estavam ensinando algo, estavam buscando nos ensinar -com suas próprias vidas- que nós podemos morrer de boca aberta. O fato de morrer de boca aberta sempre deixa alguém impressionado. Que este alguém tenha como marca seguir contando a história”.

Segundo ela, “precisamos aprender, ao mesmo tempo em que ensinamos nossas crianças, adolescentes, jovens, pessoas da nossa comunidade em geral, isto que tanto ensinou Paulo Freire: a escutar. A escutar nossos territórios. Porque toda ação artística que parte da escuta da comunidade inspira pessoas de diferentes idades a realizar algo que será educação, será arte, será transformação. Necessitamos compartilhar nossas histórias, compartilhar nossas vidas”.

Takaiúna em Quito, durante o 3º Congresso Latino-americano de Cultura Viva Comunitária

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Arte comunitária

Atriz e arte-educadora comunitária há mais de 20 anos, Takaiúna começou no teatro amador em 1999, participando do Grupo de Teatro Repensar, onde permaneceu até 2004. Durante 15 anos, ela colaborou com o Ponto de Cultura Cidade Livre, tendo sido presidenta da instituição por oito anos. A Associação Sociocultural Cidade Livre foi criada em 2004, em Aparecida de Goiânia, por professores, universitários, funcionários públicos e pessoas da comunidade que resolveram montar um grupo para desenvolver um trabalho socioeducativo e artístico nas escolas públicas da periferia. 

Como representante do Ponto de Cultura Cidade Livre, ela também participou do 3º e do 4º Congresso Latino-americano de Cultura Viva Comunitária, realizados em 2017 e 2019 no Equador e na Argentina, respectivamente. E recebeu uma bolsa para o Curso de Pós-graduação em Políticas Culturais de Base Comunitária, que a Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso-Argentina) realiza em parceria com o IberCultura Viva desde 2018. O curso “Dramaturgias pós-coloniais e formas de compartilhamento”, que ela e Pablo Lopes inscreveram em 2019 no Banco de Saberes Culturais e Comunitários IberCultura Viva, é resultado do projeto que ela apresentou no fim do curso da Flacso.

Cientista social e gestor cultural que “pesquisa e produz poéticas políticas decoloniais”, Pablo Lopes se juntou ao Coletivo Justina em 2019, quando foi montado o espetáculo Canta memórias, com o qual eles começaram as atividades integradas à pesquisa de cultura popular brasileira. Entre 2015 e 2018, ele foi gestor do Teatro de Bolso Cidade Livre, em Aparecida de Goiânia. Também foi conselheiro municipal de Cultura (2017 -2019) e um dos coordenadores do Ponto de Cultura Cidade Livre, sendo responsável por oficinas e cursos de mobgrafia (fotografia com dispositivos mobile), pela Mostra Latino-americana de Teatro Cidade Livre e pelo Seminário de Políticas Públicas. 

Curso de Teatro Comunitário no Ponto de Cultura Cidade Livre (foto: Pablo Lopes)

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Exercícios de experimentação

Com uma série de atividades desenvolvidas em parceria, o Coletivo Justina foi se consolidando, tendo como prática estética-política o exercício de experimentação em vários segmentos artístico-culturais, do artesanato ao teatro, do audiovisual à literatura. Em abril de 2021, o coletivo lançou com a editora Goiânia Clandestina a Revista Cultural Justina, que aborda temas relacionados à arte comunitária, ancestralidade e literatura. Em cinco meses foram impressos mais de mil exemplares com distribuição para sebos, livrarias, Pontos de Cultura e leitores em 10 estados brasileiros. 

Também pela editora Goiânia Clandestina, Takaiúna lançou em maio de 2021 seu primeiro livro de contos, Boca aberta. Escrito durante o período de isolamento social, este livro sobre infância, família, vida e morte tem como ambiente a natureza interior, os espaços afetivos e imaginários da autora, e a relação que as personagens estabelecem com ela. 

Atualmente, o Coletivo Justina tem montado espetáculos em parcerias com grupos como o Núcleo 2, de Uberlândia (Minas Gerais), e Ludos, de Goiânia (Goiás). E tem levado essas montagens em suas andanças por diferentes comunidades do continente. “A arte comunitária na América Latina é algo que caminha, apesar de tudo”, disse Takaiúna em setembro de 2022, quando apresentou em Cochabamba (Bolívia) o espetáculo Dr. Raimundo, uma coprodução do Coletivo Justina com o Teatro Ludos. 

Em Cochabamba, numa das apresentações de Dr. Raimundo

 

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Cicatrizes da colonização 

1888, o espetáculo mais recente, foi criado também em Cochabamba, com o grupo de teatro El Masticadero. Dirigido pela boliviana Claudia Eid Asbún, o espetáculo tem Takaiúna como dramaturga e atriz e é fruto de uma pesquisa em andamento sobre as narrativas de mulheres afro-indígenas na América Latina. Questões sobre ancestralidade, medicina ancestral, o feminino e as relações com a natureza atravessam a trama.

“A obra acontece no universo da medicina ancestral, que conecta tanto com a Bolívia como com o Brasil. Durante a apresentação, questões em comum nos ajudam a perceber que somos uma única região que vive as cicatrizes da colonização”, conta Takaiúna, que este ano iniciou um processo de formação em dramaturgia própria em parceria com Claudia Eid. “Montar um texto autoral era um sonho que há muito tempo eu guardava; poder realizá-lo é uma conquista pessoal e também coletiva”, comenta.

Durante o processo de construção da obra, as pesquisadoras buscaram uma escrita que pudesse ser como rede, a trançar as memórias da atriz afro-brasileira com a experiência de ser mulher preta na América Latina. Os “elementos-pontes”, termo cunhado pela atriz para definir os elementos cênicos que possuem uma cosmologia comum no território latino-americano, se cruzam e se personificam na personagem Justina, uma curandeira que vive no Brasil no ano de 1888.

As questões apresentadas em cena reconhecem os rastros da estrutura escravocrata a que são submetidos os corpos de mulheres pretas na América Latina. “Elas enfrentam violências físicas, psicológicas, simbólicas e o constante apagamento de suas memórias ancestrais. A desvalorização dos conhecimentos de ervas e rezas é um desses esquecimentos forçados”, afirma Takaiúna.  

O espetáculo teve uma primeira leitura dramática em Cochabamba, e quatro apresentações em cidades de Goiás (Aparecida de Goiânia, Bonfinópolis e Senador Canedo) entre 21 de novembro e 10 de dezembro de 2022.

 

Com Claudia Eid, nos ensaios de 1888 na Bolívia

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Saiba mais sobre o Coletivo Justina: www.facebook.com/coletivojustina/

https://www.instagram.com/coletivojustina

A Associação Pracatum e a revolução dos tambores no Candeal: música, educação e desenvolvimento comunitárioA Associação Pracatum e a revolução dos tambores no Candeal: música, educação e desenvolvimento comunitárioA Associação Pracatum e a revolução dos tambores no Candeal: música, educação e desenvolvimento comunitárioA Associação Pracatum e a revolução dos tambores no Candeal: música, educação e desenvolvimento comunitárioA Associação Pracatum e a revolução dos tambores no Candeal: música, educação e desenvolvimento comunitárioA Associação Pracatum e a revolução dos tambores no Candeal: música, educação e desenvolvimento comunitário

Por IberCultura

EnEm 17, jan 2020 | Em | Por IberCultura

A Associação Pracatum e a revolução dos tambores no Candeal: música, educação e desenvolvimento comunitário

O Candeal é uma comunidade onde se respira música. Neste bairro de Salvador, Bahia, onde nasceu Carlinhos Brown, percussionistas se juntaram para ensinar uns aos outros e acabaram abrindo portas para uma série de movimentos artísticos e sociais que mudaram a vida dos habitantes da região.

Nesta favela diferente das demais, o que se vê pelas ruas são meninos e meninas com instrumentos, com vontade de aprender a tocar, cantar e dançar. “Quando você entra no Candeal pela primeira vez e começa a respirar e a ver as pessoas pelas ruas, sobretudo as crianças, algo dentro de você muda”, afirmou o diretor espanhol Fernando Trueba, que em 2004 rodou ali um documentário em forma de “musical social” chamado O Milagre do Candeal.

O Candeal Pequeno é parte do bairro de Brotas, uma comunidade com população de baixa renda que faz divisa com bairros de classes média e alta de Salvador. Neste lugar onde vivem cerca de 1.800 famílias e 9.300 pessoas, existem quatro associações de moradores, quatro praças públicas, um campo de futebol, uma quadra de esportes, uma escola de música, quatro estúdios de gravação, uma cooperativa de reciclagem de óleo residual de cozinha, uma escola de inglês, uma escola infantil de período integral e um posto de saúde.

Grande parte dessa estrutura se deve ao trabalho coletivo desenvolvido no bairro pela Associação Pracatum, criada por Carlinhos Brown, este artista inquieto que identificou o potencial dos moradores e propôs, através da música, resgatar a herança cultural do Candeal e aproveitar elementos da realidade local para promover a transformação socioeconômica.

 

 

A comunidade é uma das mais antigas de Salvador, com forte herança africana. “Era uma roça santeira de candomblé, um centro sagrado onde era difícil chegar. Era uma floresta. Até os 12 anos vivi ali sem luz elétrica, sem saneamento, sem escola”, contou Carlinhos Brown na roda de conversa sobre cultura comunitária realizada em 4 de novembro de 2019, no Museu do Carnaval de Montevidéu (Uruguai), durante a Semana da Cooperação Ibero-americana.

Brown, que é embaixador ibero-americano da cultura desde 2018, foi convidado pela Secretaria Geral Ibero-americana (SEGIB) a participar deste encontro com representantes do programa IberCultura Viva e de Pontos de Cultura do Uruguai e da Argentina, e relatar sua experiência com o projeto social que desenvolve no bairro de Candeal desde 1994.

 

Como começou

Brown na roda de conversa com representantes de Pontos de Cultura em Montevidéu

Ao explicar o contexto em que surgiu a Associação Pracatum Ação Social, o músico brasileiro contou como o bairro deixou de ser uma floresta nos anos 1970 (depois que o então governador do estado decidiu abrir um caminho para o aeroporto de Salvador, com uma estrada passando por ali), e como a realidade local anos mais tarde demonstrou a necessidade de mobilização e mudança da comunidade.

“Com a estrada que se construiu veio o ‘desenvolvimento’, e nós que vivíamos ali começamos a conhecer a realidade. Nossos pais foram chegando à terceira idade, e tínhamos que trabalhar, mas não estávamos preparados, não tínhamos educação. Houve uma recessão, e passamos a ter graves problemas sociais, como o alcoolismo e a violência doméstica”, explicou. “Foi um senhor chamado Mestre Pintado do Bongô quem trouxe a luz social. Era um músico que estava quase desistindo da profissão, porque a música que ele fazia, a música rumbera, estava em decadência. Um dia fui conhecer seu toque e aquilo mudou minha vida. Ele abriu minha mente para o mundo.”

Foi Mestre Pintado do Bongô (na certidão, Osvaldo Alves da Silva) quem iniciou Carlinhos Brown (no documento, Antônio Carlos Santos de Freitas) na percussão. Sem filhos próximos, ele o adotou como um filho, e lhe ensinou tudo o que sabia em matéria de tambores. Quando avançou na percussão, Carlinhos começou a frequentar o bairro do Pelourinho, onde já havia um importante movimento de percussionistas. “Éramos garotos com a convicção de que nossa disciplina poderia mudar lugares, e buscamos aprender. E ali aprendi tudo o que a percussão pode fazer, cumbia, guaracha, murga, tango, candombe… Passei por este estudo e comecei a crescer como cidadão, com muita alegria e muita disciplina. O problema é que eu saltava, mas o bairro estava na mesma situação”, comentou Brown. 

Bebo Valdés, Mestre Pintado do Bongô e Carlinhos Brown (Foto: Arquivo pessoal)

Quando começou a compor músicas e a ganhar dinheiro com elas, Carlinhos Brown passou a pôr em prática algo que também havia aprendido com Mestre Pintado do Bongô: compartilhar. Uma parte do dinheiro que recebia por suas composições, ele guardava para comer, e a outra ia para a comunidade. “Houve um apoio da ancestralidade, da espiritualidade, que me fez grande. E me fez grande não para ser diferente, mas para ser um agente social”, afirmou o músico, cantor, compositor, arranjador, produtor e agitador cultural que nunca se considerou um líder, “e sim uma mirada atenta junto a outras miradas”. 

“Nós, percussionistas, nos juntamos e todos saíram sabendo como fazer o que eu estava fazendo. Conseguimos criar novas formas de liderar a comunidade, e isso foi uma revolução”, ressaltou Brown. “Assim começamos a buscar um movimento de alfabetização, porque ônibus passava e a gente não sabia qual pegar. Convidei psicólogos, pedagogos, técnicos, professores, e começamos a ter um desenvolvimento social coletivo. A comunidade falava de suas necessidades em encontros como este, e nós íamos buscar escolas para as crianças, buscar saneamento, buscar algo para que as casas não viessem abaixo com as chuvas… Assim as coisas foram saindo.”

Por alguns anos foi Carlinhos Brown quem financiou o projeto; hoje em dia, a Associação Pracatum se sustenta com recursos e serviços de organismos internacionais, governamentais, instituições de ensino, empresas e associações do terceiro setor. A entidade também é um dos Pontos de Cultura certificados pelo governo federal.  

 

Como funciona

A Associação Pracatum Ação Social é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que surge da necessidade de profissionalização da comunidade e da busca de alternativas para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes. Suas atividades se dividem em dois programas principais: Tá Rebocado, voltado para o desenvolvimento comunitário, e Pracatum, a escola de música e tecnologias. A partir desses dois eixos se desenvolvem vários projetos educativos, culturais, de urbanização e saneamento do bairro. 

O programa de desenvolvimento comunitário do Candeal teve início em 1994 com o objetivo de promover a transformação social a partir das necessidades da comunidade, sempre respeitando a realidade local e as subjetividades de seus habitantes. (“Tá Rebocado” é uma gíria baiana popular na década de 90 que designa confirmação, assertividade, acabamento.) 

Como explica o site da Pracatum, o projeto tem como filosofia a construção comunitária, participativa e democrática. Os moradores do bairro têm sido a base legitimadora do processo, pois identificam as reais necessidades vivenciadas na comunidade e colaboram com soluções práticas e tangíveis. A participação ativa da comunidade tem sido um fator preponderante, desde a fase de identificação de demandas, até o momento de construção de propostas, implantação e execução de atividades, bem como de acompanhamento e avaliação dos processos iniciados.

Ao longo desses 25 anos, o programa alcançou resultados como a ampliação das redes de esgoto sanitário, abastecimento de água e eletricidade; a construção de 120 unidades habitacionais; melhorias em 50 residências; pintura e reboco em 60 casas; melhoria do campo de futebol; recuperação e valorização da fonte de água; fortalecimento de microempresas, através de cursos de capacitação e qualificação; implantação de um posto de saúde; criação de uma escola infantil; formação de uma escola de música; e construção de duas praças públicas.

 

A escola de música

O programa de música, educação e cultura da Associação Pracatum Ação Social utiliza metodologias que contribuem para o desenvolvimento dos alunos, buscando, para além do ensino teórico, desenvolver uma atitude responsável, solidária e cidadã.

Fundada em 1999, a Pracatum – Escola de Música e Tecnologias tem como foco o ensino técnico e profissional no campo musical. A escola se propõe a pensar a música a partir de suas múltiplas facetas, buscando capacitar seus alunos por meio do aprendizagem prático dos instrumentos e do estudo das teorias musicais, seus repertórios e processos históricos. A proposta pedagógica abarca a apropriação dos ritmos populares e a busca por inovações.

Desde a sua fundação, a escola formou cerca de 2 mil músicos, num espaço pedagógico que proporciona o desenvolvimento de estudos, pesquisas e produções no terreno musical. A estrutura dispõe de estúdio de gravação, salas de aula, biblioteca, estúdios individuais e para prática em grupo, e uma sala com cerca de 400 instrumentos diversificados.

 

Os cursos de Educação Profissional Técnica de Nível Médio oferecidos pela Pracatum são: Curso Técnico em Instrumento Musical (1.200 horas) e Curso Técnico em Processos Fonográficos (864 horas). Os cursos  foram regulamentados pelo Ministério da Educação em novembro de 2014, e as primeiras turmas tiveram início em maio de 2016.

As oficinas, cursos e workshops realizados na escola proporcionam aos alunos diversas vivências e intercâmbios. A intenção é prepará-los para o mercado musical, ensinando-os as etapas de preparação, produção e difusão da música, pregando o respeito e a importância de todos os profissionais envolvidos na cadeia musical.

 

Uma referência ibero-americana

Esta história de como os vizinhos e vizinhas do Candeal conseguiram melhoras na parte de habitação e de saneamento básico a partir dos tambores – e de como a solidariedade, a luta e o trabalho de um pequeno grupo de pessoas puderam melhorar a vida de toda uma comunidade – hoje é uma referência para organizações culturais comunitárias de vários países de Ibero-América. No encontro realizado em Montevidéu com Pontos de Cultura do Uruguai e da Argentina, representantes das organizações participantes comentaram como o filme O Milagre do Candeal, de Fernando Trueba, lhes serviu de inspiração para desenvolver os trabalhos em seus territórios.

Para Fernando Trueba, Carlinhos Brown começou a promover esta série de ações musicais e sociais (às quais logo se somaram outras pessoas) porque sabia que a música havia salvado ele e acreditou que podia representar o mesmo para os demais jovens.  “Carlinhos tem muito desenvolvido o sentido da responsabilidade em relação à sua comunidade”, comentou o cineasta. “Ele é um espelho para muitos garotos e tenta repartir essa responsabilidade para que o Candeal não seja só ele. É a reencarnação perfeita de Peter Pan: cuida das crianças, organiza, faz com que vivam aventuras, fabrica uma realidade”. 

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(*) Texto publicado em 17 de janeiro de 2020

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Saiba mais:

https://www.pracatum.org.br/

https://www.facebook.com/pracatum/

 

 

(Fotos: Associação Pracatum)

 

 

 

 

 

Jongo de Pinheiral: a história de uma cidade e seu povo contada de geração em geraçãoJongo de Pinheiral: a história de uma cidade e seu povo contada de geração em geraçãoJongo de Pinheiral: a história de uma cidade e seu povo contada de geração em geraçãoJongo de Pinheiral: a história de uma cidade e seu povo contada de geração em geração

Por IberCultura

EnEm 20, nov 2016 | Em | Por IberCultura

Jongo de Pinheiral: a história de uma cidade e seu povo contada de geração em geração

A cidade de Pinheiral, no Vale do Paraíba (sul do estado do Rio de Janeiro), nasceu ao redor de uma estação ferroviária, no entorno de uma fazenda de café, a Fazenda São José dos Pinheiros. Nesta propriedade da família Breves, uma das maiores da região nos tempos do Brasil Colônia, havia um celeiro de negros escravizados. Eram 2 mil escravos trabalhando na fazenda quando foi aberto o testamento do comendador Breves, dando-lhes a alforria e uma parte das terras, em 1879. O casarão onde ele morava, considerado um palácio, hoje são apenas ruínas. Mas algo ali se mantém vivo desde então: o jongo.

Fatinha do Jongo é coordenadora do grupo de Pinheiral (foto: Oliver Kornblihtt)

“O jongo de Pinheiral nunca esteve adormecido, não. É uma tradição que vem sendo passada de geração para geração desde os tempos da escravidão. Há muitas famílias de jongueiros na cidade”, diz Maria de Fátima da Silveira Santos, a Fatinha do Jongo, que há mais de 40 anos trabalha pela preservação dessa manifestação cultural, reconhecida em 2005 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial brasileiro.

Também conhecido como caxambu, batuque, tambor ou tambú, o jongo é uma expressão de origem africana que se manifesta no Brasil principalmente na região Sudeste e conta com três elementos essenciais: o canto, a dança e a percussão. Nas rodas de jongo, homens e mulheres dançam e cantam os chamados “pontos”, misturando metáforas e dialetos da língua banto, ao som de tambores, fabricados em sua maioria de maneira artesanal. Em Pinheiral, a tradição é de dois tambores: o grande e o candongueiro. O contratempo entre os dois é feito com um pedaço de pau chamado de macuco.

Construção coletiva

Fatinha conta que o jongo de Pinheiral passou a se organizar como grupo no fim dos anos 1980, início dos 1990, com a criação da União Jongueira. Em 1996, com o objetivo de preservar a dança do jongo e aprimorar a biblioteca da cultura afro brasileira na região, eles fundaram o Centro de Referências e Estudos Afro do Sul Fluminense (Creasf). E passaram a estreitar seus vínculos com escolas e universidades, contando a história da criação da cidade e mantendo viva a memória dos antepassados.

Em 2005, o Centro de Referência do Jongo de Pinheiral ganhou o primeiro edital de Pontos de Cultura do Ministério da Cultura. Com o prêmio, eles montaram a casa onde trabalham até hoje em três vertentes: a preservação da dança do jongo, a manutenção de uma biblioteca afro, e a culinária afro. “Com isso tentamos ter um retorno para poder manter a casa. Porque fizemos o plano de salvaguarda, e conseguimos o respeito, a divulgação e a valorização do jongo nesses 10 anos, mas temos dificuldades para manter o trabalho”, ela comenta.

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(Fotos: Jongo de Pinheiral)

Desde 2008, o Jongo de Pinheiral também integra o Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, um programa desenvolvido pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em parceria com 15 comunidades jongueiras do Sudeste. São grupos da região metropolitana do Rio de Janeiro, do Sul e do Noroeste fluminenses, da Zona da Mata mineira e dos estados de São Paulo e Espírito Santo, que juntos buscam a construção de políticas públicas para salvaguarda deste bem registrado como patrimônio cultural do Brasil. Para os jongueiros, o Pontão é visto como um ponto de encontro mantenedor da cultura viva.

“Algumas comunidades têm problemas com a questão da intolerância, outras não. A gente faz com que os evangélicos, por exemplo, entendam que é nossa cultura, não nossa religião. É a cultura do povo negro que está dentro da roda do jongo”, observa Fatinha. “Na época da escravidão, os negros usavam a roda de jongo para se organizar, para cantar a saudade da África, para namorar. Tudo acontecia na roda. Hoje, usamos o jongo para estar onde não estaríamos se não fosse por ele. A gente se apresenta em teatros, festivais, escolas e universidades.”

Nas escolas

Mesmo antes da aprovação da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e particulares do país, o Grupo Jongo de Pinheiral já estava dentro das escolas da região do Vale do Paraíba, trabalhando a autoestima das crianças negras, valorizando a contribuição do povo negro para a formação do Brasil. “A lei veio reforçar o que a gente fazia”, comenta Fatinha, que é membro da Comissão Nacional de Mestres e Griôs*.

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(foto: Oliver Kornblihtt)

Embora tenha se aposentado como professora, Fatinha segue atuando numa escola vizinha, em Barra do Piraí, onde um grupo de jongo foi formado há mais de cinco anos. “Os pais participam, as crianças adoram. Aprenderam a gostar do jongo, a saber o que é jongo. É um trabalho que valorizo muito, até por estar dentro de uma escola”, destaca. “Por meio da Ação Griô (política pública que é referência de gestão compartilhada, envolvendo projetos pedagógicos de diálogo entre a tradição oral e a educação formal), a gente conseguiu avançar em todo o território nacional, valorizando a presença do mestre, da parteira, da rezadeira, e levando nossas tradições, nossos saberes, para a escola formal.’’

Para Fatinha do Jongo, a criação do programa Cultura Viva, em 2004, foi de fundamental importância para aqueles que trabalham com a cultura popular no Brasil. “Até Gilberto Gil (assumir o Ministério da Cultura e criar o programa), a gente trabalhava nas comunidades e era uma luta fazer com que o mestre fosse respeitado por sua sabedoria, que estivesse dentro das escolas. O programa Cultura Viva nos proporcionou isso, de não perder muitas das nossas tradições, porque conseguimos passar para os jovens. Na comunidade jongueira temos lideranças jovens, e o trabalho deles é maravilhoso. Eles assumiram as comunidades, trabalham com os mestres mais velhos, e ajudam a gente a manter a tradição.”

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Passados presentes

Graças aos jovens e à comunidade acadêmica, os jongueiros do Sudeste vêm ganhando o apoio de iniciativas como Passados Presentes: Memória da Escravidão no Brasil, um projeto de turismo de memória a partir de um aplicativo para celular, lançado em 2015. Quatro roteiros conduzem os visitantes a locais emblemáticos para o tráfico negreiro e a história da escravidão no Brasil, em trajetos pelo Quilombo do Bracuí, pelo Quilombo de São José, pela cidade de Pinheiral e pelo Centro do Rio de Janeiro.

Nos quilombos e em Pinheiral, os pontos de memória foram identificados pelos moradores, descendentes diretos da última geração de africanos escravizados, em parceria com as historiadoras que coordenam o projeto. São eles que contam a história local a partir do que ouviram de seus pais e avós.

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Piquenique cultural no Parque das Ruínas

“A gente fez uma exposição a céu aberto contando a história da fazenda, a história da estação e a história do jongo. Porque a única coisa que sobreviveu da fazenda foi o jongo de Pinheiral”, ressalta Fatinha. Doze pontos da cidade foram mapeados para o projeto — aí incluídos a casa do Jongo, a estação ferroviária, as duas capelas, a igreja matriz e uma festa junina que havia lá (“durava 15 dias e tinha jongo todo dia”).

Em Pinheiral, o lançamento do projeto Passados Presentes marcou também a inauguração do Parque das Ruínas, onde estava o antigo casarão da Fazenda São José dos Pinheiros. Em outubro de 2016, os jongueiros da cidade começaram a fazer ali uns piqueniques culturais, levando a dança de roda para as ruínas do casarão. Em 20 de novembro,  Dia da Consciência Negra, mais uma conquista: o prefeito José Arimathéa Oliveira assina o termo de cessão das terras do Parque das Ruínas para o Grupo Jongo de Pinheiral edificar ali sua sede. É o jongo, enfim, voltando para casa.

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*Griô ou mestre(a) é todo(a) cidadão(ã) que se reconheça e seja reconhecido(a) pela própria comunidade como herdeiro(a) da tradição oral e que, através do poder da palavra, da vivência, dialoga, aprende e ensina, transmitindo saberes e fazeres de geração em geração, garantindo a ancestralidade e identidade do seu povo.

 

(*Texto publicado em 20 de novembro de 2016)

Saiba mais:

https://www.facebook.com/jongo.pinheiral

O Jongo de Pinheiral: entre história, memória e direitos (por Vanessa Santos do Canto e Luana da Silva Oliveira)

Thydêwá: o sonho coletivo que deu voz aos povos indígenasThydêwá: o sonho coletivo que deu voz aos povos indígenasThydêwá: o sonho coletivo que deu voz aos povos indígenasThydêwá: o sonho coletivo que deu voz aos povos indígenas

Por IberCultura

EnEm 18, maio 2016 | Em | Por IberCultura

Thydêwá: o sonho coletivo que deu voz aos povos indígenas

Em 9 de julho de 1994, Dia da Independência da Argentina, Sebastián Gerlic pegou as malas e veio morar no Brasil. Faltavam dois dias para completar 25 anos. Seis meses antes, ele havia passado um mês viajando pelo Nordeste, de Fortaleza a Salvador. Apaixonado pelo país, largou o emprego em uma agência de publicidade onde era produtor audiovisual, largou as duas universidades que estava cursando (Comunicação Social e Licenciatura em História da Arte), largou a carreira de cineasta, e foi morar em São Paulo. Na capital paulista, conseguiu trabalho como assistente de um diretor de comerciais de televisão. E ficou trabalhando como publicitário nos seis anos seguintes. Até o dia em que uma bomba quase caiu em sua cabeça.

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Sebastián Gerlic é presidente da Thydêwá (Foto: Aleksandra Pinheiro)

“No dia 22 de abril de 2000, eu estava em Porto Seguro (Bahia) filmando a manifestação dos 500 anos de resistência dos indígenas quando mandaram bombardear os manifestantes. Enquanto as bombas caíam em nossas cabeças, peguei meu cachimbo e fumei pedindo a Tupã para não morrer. Nesse dia eu deixei a publicidade de vez e passei a ‘ensinar’ comunicação aos indígenas, a reaprender o que é viver na convivência com eles”, conta Sebastián, que nesses mais de 20 anos em terras brasileiras teve pouca conexão com a terra natal.

O cachimbo não apareceu por acaso no meio da confusão. Desde que chegou ao Brasil, além de atuar como publicitário, Sebastián se dedicou aos estudos do xamanismo. Um interesse que veio dos tempos de adolescência. “Aos 13 anos, fiz uma viagem só eu e meu pai, fomos para o norte da Argentina e lá conheci os indígenas. Anos mais tarde, fiz uma viagem por Bolívia e Peru e me apaixonei por eles. Meu sonho à época era fazer documentários para televisão e mostrar ao mundo que a ‘civilização dominante’ estava louca e doente, se suicidando e assassinando um monte de espécies e culturas”, comenta.

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A organização

O sonho passou a tomar forma com a Thydêwá, organização não governamental que funcionou de maneira informal na cidade de Salvador entre 1998 e 2002, época em que coordenou a produção e editou os quatro primeiros volumes da coleção Índios na visão dos índios. “Foi justamente fazendo Índios na visão dos índios que decidimos nascer com CNPJ”, explica Sebastián, um dos idealizadores e fundadores da ONG.

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“A Thydêwá nasce de uma alquimia multicultural: indígenas de Alagoas, Bahia e Pernambuco, duas paranaenses, uma gaúcha, um baiano, um chileno e um argentino. Éramos um coletivo que às vezes tinha mais gente, outras menos. Com garra para cuidar do institucional éramos menos, mas o mais importante sempre foi o que circulou pelos corações, o que é feito desde e pelos corações”, destaca o argentino, que atualmente divide a sociedade no papel com quatro indígenas: Potyra Tê Tupinambá (BA), Mayá Pataxó Hãhãhçae (BA), Nhenety Kariri-Xocó (AL) e Atiã Pankararu (PE).

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Mais do que uma série de livros, Índios na visão dos índios acabou se firmando como uma tecnologia sociocultural educativa da Thydêwá. Por meio dela, indígenas analisam a própria realidade atuando como historiadores, antropólogos e jornalistas. São eles mesmos que tiram fotos, colhem depoimentos, escrevem, desenham, palestram, dialogam com alunos nas escolas, dão entrevistas, constroem e partilham suas mensagens.

A coleção de livros já conta com 26 títulos em papel — muitos deles estão disponíveis gratuitamente em formato digital. “Os exemplares circulam dentro e fora das aldeias, servindo para estreitar as relações interculturais, criando pontes entre as culturas indígenas e as sociedades da globalização, promovendo a cultura de paz”, ressalta Sebastián. Segundo ele, mais de 1000 indígenas de mais de 20 etnias já interagiram com  e a partir desta tecnologia socioeducativa, reconhecida em premiações brasileiras e internacionais.

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Em rede

Outro projeto muito premiado da Thydêwá é a Rede Índios On-Line, que leva internet a sete aldeias para facilitar a comunicação entre os povos, estabelecendo pontes de mão dupla entre as comunidades indígenas. O projeto ganhou o Prêmio de Inclusão Digital Telemar e, no ano seguinte, o primeiro edital de Cultura Viva, passando a ser reconhecido como Ponto de Cultura. Ainda em 2005, 41 bolsistas indígenas começaram a trabalhar em seis comunidades como Agentes de Cultura Viva.

Em 2009, após receber o Prêmio Mídia Livre pelas ações da Rede Índios On-Line, a organização firmou convênio como responsável pelo Pontão Esperança da Terra. Em 2014, com mais prêmios na bagagem e já reconhecida como Ponto de Memória e Ponto de Leitura, a Thydêwá deu início à Rede de Pontos de Cultura Indígena do Nordeste.

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“Cultura Viva é o melhor programa que nossa instituição conhece. Primeiro porque nasceu de reconhecer o que existe, pulsa reconhecendo e apoiando os trabalhos, vive de potencializar a vida. É um programa especial porque se constrói na interação real”, escrevem eles em Cultura Viva – Esperança da Terra, o 19º livro da série Índios na visão dos índios, que desta vez teve o Pontão como narrador.

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Pelas mulheres indígenas, o 20º título da coleção, foi lançado em 2014

No 20º volume, Pelas mulheres indígenas, 20 mulheres de oito comunidades do Nordeste fizeram fotos e escreveram sobre suas vidas, seus sonhos, sobre ser mulher indígena hoje. O livro, que também contava com uma cartilha sobre como prevenir e lidar com casos de violência conjugal, era parte de um projeto de formação de agentes multiplicadoras de transformação social. Além de encontros na sede da ONG, em Olivença, o projeto previa a criação de uma rede multiétnica, a Comunidade Colaborativa de Aprendizado Pelas Mulheres Indígenas (www.mulheresindigenas.org).

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Livros digitais

E foi com a intenção de levar a palavra indígena a muito mais gente, no mundo todo, que eles lançaram a coleção de livros digitais Kwatiara. Dirigidos a crianças, jovens e adultos, podendo ser baixados em tablets e celulares, assim como em pdf, os dois primeiros e-books (O canto da Lua e Dois irmãos no mundo) ganharam versões em quatro idiomas: português, inglês, francês e espanhol.

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O canto da Lua, título que abre a série, é baseado em um porancy (canto indígena tradicional) que conta o que aconteceu quando os tupinambás passaram a adormecer em frente à televisão: Jacy (a Lua, em tupi) parou de brilhar. Dois irmãos no mundo, por sua vez, é uma história kariri-xocó contada por um guardião das memórias da aldeia, sobre dois irmãos que nasceram às margens do rio São Francisco, cresceram felizes e em comunhão com a natureza, até que um belo dia um deles resolver ir embora da aldeia, ansioso para conhecer o que o mundo lhe reservava.

Kwatiara começou com livros de autoria de indígenas de diferentes etnias do território brasileiro para “crianças de 0 a 100 anos”. Com o apoio do programa IberCultura Viva (o projeto foi um dos sete vencedores da categoria 3 do Edital de Intercâmbio, lançado em 2015), a coleção ficou maior, passando a ser agora da  Ibero-América. Virou Kwatiara Abya Yala (em tupi, “Escrita indígena da América”).

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O intercâmbio

As duas primeiras histórias ibero-americanas a ganhar e-book da série Kwatiara Abya Yala vêm da Argentina: Comunidad Indígena Territorial Comechingón Sanavirón Tulián (de Córdoba) e Comunidad Linkan Antain Corralitos (de Salta). Uma delas, inclusive, já terminou o texto e está fazendo os desenhos do livro.

Alfredo Casimiro e seu povo Atacameño recebe Atiã Pankararu em Salta (Arg)

Alfredo Casimiro e atacameños recebem Atiã Pankararu em Salta (Argentina)

O contato entre brasileiros e argentinos, iniciado por e-mail, acabou se estreitando em janeiro de 2016, quando Sebastián Gerlic e Atiã Pankararu foram à Argentina visitar Mariela Tulián e Alfredo Casimiro, os dois indígenas que responderam ao chamado da Thydêwá para iniciar uma parceria em função do Edital IberCultura Viva de Intercâmbio. Mariela e Alfredo vão retribuir o convite visitando o Pontão Esperança da Terra, em Ilhéus, entre os dias 16 e 20 de junho. Sabrina Landoni, diretora de Diversidade e Cultura Comunitária do Ministério da Cultura da Argentina, também é aguardada no encontro na Bahia.

“Era um desejo meu compartilhar com nossos irmãos indígenas da Argentina os quase 14 anos de experiência em tecnologias socioculturais que criamos com a Thydêwá”, afirma Sebastián. Nesses anos de trabalho na Bahia, ele viajou várias vezes para a Europa levando índios brasileiros, foi e voltou à Colômbia, recebeu indígenas colombianos na Thydêwá em três ocasiões, recebeu norte-americanos, uruguaios, celtas. Mas só agora pode, enfim, realizar o sonho de trocar experiência com os conterrâneos.

Mariela Tulian (Arg) e Atiã Pankararu (Br) em Cordoba (Arg)

Mariela Tulian e Atiã Pankararu em Córdoba (Argentina)

 

 

(*Texto publicado em 18 de maio de 2016)

Saiba mais:

www.thydewa.org

Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade: A militância pela arte da comunidade LGBT

Por IberCultura

EnEm 05, maio 2016 | Em | Por IberCultura

Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade: A militância pela arte da comunidade LGBT

Texto: Cristiane Nascimento
Assessoria de Comunicação/ Ministério da Cultura (Ascom/MinC)

Utilizar-se da arte e da comunicação para a quebra de paradigmas, compreendendo tais áreas como potentes meios de transformação social e cultural. É essa a base do Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade, organização não governamental (ONG) de Porto Alegre (RS) reconhecida como Ponto e Pontão de Cultura pelo Ministério da Cultura (MinC).

A organização nasceu em 2001, a partir da reunião de um grupo de militantes da luta contra a aids e do movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT), com a proposta de desenvolver ações sociais com abordagens direcionadas exclusivamente à comunicação e à saúde. Em um momento anterior às redes sociais, hoje intrínsecas ao cotidiano, o grupo já ensaiava algumas mobilizações sobre o tema na internet.

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Campanha “Acredite em sonhos, provoque mudanças” (2011)

De lá para cá, o Somos foi muita coisa. A arte, em si, chegou tímida, representada inicialmente por esquetes de caráter mais educacional e informativo. Aos poucos, ela foi ganhando espaço dentro da instituição, que passou a criar, produzir e difundir ações artísticas e culturais com abordagens temáticas de questões ligadas à diversidade de expressões da sexualidade humana, com foco na cultura LGBT. Por fim, acabou se transformando no principal instrumento de conscientização da ONG.

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Sandro Ka é diretor financeiro do Somos e responsável pelas iniciativas de comunicação e cultura

“Estratégias que lidam pelas vias do sensível são extremamente importantes para a quebra de paradigmas e essenciais para acabarmos com o preconceito. Percebemos, por exemplo, que um espetáculo sobre travestilidade é muito mais potente e se faz ouvir muito mais do que um discurso político propriamente dito ou um material informativo”, afirma Sandro Ka, diretor financeiro do Somos e também responsável pelas iniciativas de comunicação e cultura. “As cenas ali apresentadas continuam reverberando dentro daqueles que a presenciaram, colocando suas convicções em cheque. A arte possibilita que enxerguemos a vida com outros olhos e saiamos do lugar comum. É algo que funciona de dentro para fora e acaba mudando o nosso jeito de pensar e agir”, destaca.

Em 2005, a ONG foi reconhecida como Ponto de Cultura. O grupo possuía um centro de documentação com centenas de livros e filmes que tratavam de direitos humanos e diversidade sexual. O projeto vencedor do edital tinha como intuito justamente a ampliação desse acervo, em volume e acessos. Na ocasião, a organização saiu em caravana pelo estado do Rio Grande do Sul, realizando apresentações e debates sobre o tema.

Tempos depois, em 2009, o Somos ganhou o selo de Pontão de Cultura, quando passou a articular um conjunto de iniciativas culturais, desenvolvendo ações de mobilização, formação e mediação não apenas em Porto Alegre, mas também em âmbito nacional. O grupo passou a oferecer oficinas e workshops de linguagens diversas, dentre as quais cinema, dança e teatro, com uma abordagem transversal, que sempre tocava em questões de gênero e diversidade sexual.

Mapeamento cultural LGBT

Outro braço do Pontão definiu-se por um mapeamento cultural LGBT, que consistia em visitas in loco a diversas cidades brasileiras – entre capitais ou municípios emblemáticos para a cena LGBT – para o registro de manifestações artísticas e culturais vinculadas e representativas da população LGBT. “Tínhamos o objetivo de fazer um levantamento inicial sobre a produção artística e cultural desse público, possibilitando, assim, uma mirada para o que se produz de qualidade dentro desse segmento, fundamental, inclusive, para a criação de uma identidade”, afirma Sandro.

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Lorna Washington, artista transformista visitada pelo Mapeamento Cultural LGBT

 

O diretor conta que, pelo projeto, passou por 18 cidades brasileiras, nas quais pode presenciar e registrar um cenário significativo de arte transformista e paradas do orgulho LGBT, principalmente. Apesar da qualidade, entretanto, Sandro pode enxergar algumas fragilidades. “Já há muita produção legal e de qualidade, mas que, ao mesmo tempo, é muito frágil. Principalmente porque a memória dessa produção é muito frágil. Muita coisa se perde com o passar do tempo”, diz.

O grupo possui uma série de registros da arte ligada à cultura LGBT de todo o País, entre textos, fotos e vídeos, produzidos a partir dessas visitas. Segundo Sandro, a ideia é disponibilizar tudo isso para consulta on-line, até mesmo para garantir a memória das ações.

Pontão de cultura

Enquanto Pontão de Cultura, o Somos promoveu e articulou uma série de atividades culturais, que atravessaram não apenas as fronteiras da instituição, mas, gradativamente, do estado e do país. Bailarino e drag queen há mais de 18 anos, Nilton Júnior chegou a ministrar oficinas de dança no Somos. Em perspectiva, ele acredita que a efervescência cultural nutrida pela ONG há alguns anos foi fundamental para a identidade e a promoção da cultura LGBT de Porto Alegre.

“Propiciei caminhos para que eles se sensibilizassem e descobrissem seu próprio potencial artístico. Sob preceitos da dança contemporânea, trabalhávamos muito com expressão corporal. As oficinas não tinham nada a ver com drag queen e, ainda assim, muitos acabaram retomando ou seguindo uma trajetória artística posteriormente. O que sempre disse é que se tinham algo para dizer para o mundo, seria sempre possível encontrar um modo de expressão artística para isso. Acho que o meu papel, nesse sentido, foi justamente o de plantar uma sementinha”, diz.

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Eduardo Guedes começou a concretizar no Somos o interesse pela arte performática de se travestir (Foto: Pedro Monsev)

Eduardo Guedes foi um desses alunos. Hoje DJ, drag queen e produtor cultural, ele afirma que, apesar de ter sempre nutrido um interesse especial pela arte performática de se travestir, foi no Somos que isso realmente começou a se concretizar. Muito ligado à organização, ele chegou a frequentar oficinas e workshops não só de dança, mas também de teatro, cinema e fotografia.

“Graças aos Somos que eu sou o que sou hoje. Foi ali que eu e muitos outros colegas começamos a ter consciência de que não havia nada de errado em sermos gays. E acho que a dança e o teatro, principalmente, tiveram um papel essencial nesse processo, pois exigiam que botássemos a cara ao sol e encarássemos a nós próprios. Eles permitiam uma expressão que acabou por me libertar”, conta.

Também enquanto Pontão de Cultura, o Somos criou, em 2010, o Close – Festival Nacional de Cinema da Diversidade Sexual, que inclui uma mostra de cinema competitiva com curtas-metragens brasileiros e a exibição de filmes que tratam da temática LGBT. O curta Eu não quero voltar sozinho, precursor do longa Hoje eu quero voltar sozinho, foi um dos principais destaques da primeira edição do festival.

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Close – Festival Nacional de Cinema da Diversidade Sexual

Atualmente, a mostra integra o circuito alternativo LGBT, consolidando-se, inclusive, como a mais importante referência da produção do audiovisual brasileiro sob a temática da diversidade sexual. Apesar do recorte temático, como qualquer outro festival de cinema, a premiação segue preceitos técnicos.

Parceria que ganhou asas

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Silvero Pereira realizou um trabalho de interação com travestis e transformistas da região Sul (Foto: Luciane Pires Ferreira)

Em meio a suas andanças pelo País como representante e investigador da cultura voltada à diversidade sexual, Sandro Ka conheceu Silvero Pereira, ator, produtor e diretor teatral ligado à cultura LGBT do Ceará e também integrante do coletivo artístico As Travestidas. Os pontos de encontro entre os dois produtores culturais foram claros desde o início, assim como o desejo de uma parceria. Os quase 4 mil quilômetros que separam Fortaleza de Porto Alegre, entretanto, dificultava um diálogo mais contínuo.

Em 2012, o MinC, por meio da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC), lançou o edital Bolsa Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura. O programa tinha como objetivo apoiar projetos de diferentes segmentos artísticos por meio do intercâmbio cultural entre artistas do Brasil e a rede de Pontos de Cultura.

Entre os 52 projetos que foram contemplados pelo edital, estava o BR-TRANS: Cartografia Artística e Social do Universo Trans no Brasil, assinado por Silvero Pereira. Durante seis meses, o artista realizou um trabalho de interação com travestis e transformistas da região Sul, além de uma pesquisa sobre preconceito, visibilidade trans e arte como instrumentos de provocação e mudanças sociais.

“Nós vivemos em uma sociedade que se diz democrática e respeitável, mas temos um dos maiores índices de assassinatos e agressões de travestis e transgêneros do mundo”, afirma o artista cearense. “Nesse contexto, conseguimos, por meio da arte, acessar e impactar a sociedade de forma mais imediata. A arte tem poder de catarse e identificação, tornando eventuais mudanças muito mais aceleradas”, conclui.

De sua interação e pesquisa, realizadas com apoio do Somos, nasceu o BR Trans, espetáculo que reuniu fragmentos reais da vida dos travestis, transexuais e transformistas com os quais conviveu nesse período, trazendo à tona histórias sobre exclusão, violência, afeto, desejos e transformações.

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Equipe do espetáculo BR Trans (Foto: Luciane Pires Ferreira)

A peça ganhou vida em 2013 e, desde então, tem gerado uma série de frutos. O BR Trans passou por dezenas de cidades brasileiras, contabilizando, inclusive, vários prêmios em mostras e festivais. Em julho de 2015, o espetáculo representou o Brasil no International Hispanic Theatre Festival of Miami, nos Estados Unidos e, em maio deste ano, deverá ser representado na Alemanha.

Conquistas para além da arte

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Ação de Intervenção Artística, discutindo religião e sexualidade, produzida por Sandro Ka (2008)

Apesar da forte presença do Somos na cena cultural LGBT de Porto Alegre, Sandro Ka acredita que, muito mais importante do que as movimentações em torno da arte, são as marcas que elas têm deixado na sociedade. “São pequenas conquistas que, aos poucos, vão transformando o nosso cotidiano. São passos minúsculos frente às inúmeras dificuldades que enfrentamos, mas não deixam de ser importantes”, afirma.

Para ele, mudanças comportamentais e culturais – em um sentido mais amplo, não necessariamente artístico – são as maiores conquistas da ONG, da qual participa desde 2005. Conquistas que lhe são sentidas na pele, inclusive. “Sou agente e objeto desta luta. Eu vivo as urgências pelas quais me envolvo e pelas quais trabalho. Sou agente e objeto imediato de todas as melhorias de condições de vida e cidadania geradas por essa luta. É o que me faz sentir cidadão e ter o desejo de continuar lutando”, diz.

Uma maior aceitação social e cultural da diversidade sexual, a difusão da utilização de nomes sociais e o reconhecimento de casamentos homoafetivos e da adoção de crianças por tais casais são alguns dos pequenos grandes passos que Ka acompanhou nos últimos anos.

No caso do casamento entre casais do mesmo sexo, o Somos teve papel fundamental. Isso porque, em 2011, a partir de uma ação judicial impetrada pela organização, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o direito ao casamento civil a um casal de mulheres lésbicas do Rio Grande do Sul, abrindo espaço para uma jurisprudência da causa.

“É ótimo poder olhar para trás e ver que muitos sonhos que pareciam utópicos acabaram por se consolidar. Hoje, temos acesso a alguns direitos, podemos andar mais livre e temos mais espaço para exercer a nossa sexualidade. Só espero que essas conquistas continuem se firmando e que os direitos iguais deixem de ser algo utópico”, afirma.

 (*Texto publicado em 5 de maio de 2016)

Fonte: Plataforma Rede Cultura Viva

Quilombo do Sopapo: jovens autônomos e auto-organizados em prol da resistência

Por IberCultura

EnEm 04, maio 2016 | Em | Por IberCultura

Quilombo do Sopapo: jovens autônomos e auto-organizados em prol da resistência

Texto: Cristiane Nascimento (Assessoria de Comunicação/Ministério da Cultura)

Transformar a vida de jovens de periferia a partir de ações que integram arte, cultura e cidadania. Conscientizá-los sobre o seu valor por meio de trabalhos que reforcem sua identidade periférica, promovam a cidadania e o estímulo dos direitos humanos. Foram essas as premissas que conceberam o Quilombo do Sopapo, Ponto de Cultura que está instalado no bairro do Cristal, na zona sul de Porto Alegre – região que reúne em seu território uma série de contrastes, abrigando desde empreendimentos de alto padrão a ocupações irregulares.

Leandro Anton, do Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo (RS). Foto: Oliver Kornblihtt

Leandro Anton é coordenador do Quilombo do Sopapo (Foto: Oliver Kornblihtt)

“Nossa ideia era criar uma organização potencial que fosse referência na prevenção da violência. Queríamos mostrar a estes jovens que é possível resistir – resistir, inclusive, aos assédios pelas contravenções. Mais do que isso, queríamos que estes jovens tivessem consciência de sua voz e fizessem o uso dela para criar um novo mundo, um mundo possível”, afirma Leandro Anton, coordenador do Ponto de Cultura.

Esta ideia foi a primeira certeza do programa. Para alcançar este objetivo, o grupo que concebeu o ponto resolveu fazer caminhadas pelas comunidades da região, buscando identificar quais eram as manifestações culturais desenvolvidas por seus jovens. Nestas buscas, percebeu-se que era a música, independentemente do ritmo tocado ou cantado, que criava uma unidade entre eles, os imbuíam de autonomia e os mantinha distantes do envolvimento direto com a violência.

E foi nesse contexto que nasceu o Quilombo do Sopapo. O nome do grupo, inclusive, reflete essas ideias. A criação de um território para a produção de cultura por jovens autônomos e auto-organizados em prol da resistência culminou na escolha de quilombo como símbolo de força, liberdade e diversidade multiétnica. A música como o ícone de manifestação cultural nesta construção busca em outra referência ancestral, o sopapo, tambor afro-gaúcho feito com casca de árvore e couro de cavalo.

 

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Apresentação do Iyalodê Idunn, coletivo de percussão do Quilombo do Sopapo, em abril de 2016 (Fotos: Leandro Anton)

O Quilombo do Sopapo tornou-se Ponto de Cultura em 2006, quando firmou convênio com o Ministério da Cultura (MinC), via edital do Programa Cultura Viva. A organização é fruto de uma parceria da Guayí, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), que busca desenvolver processos comunitários e ações educativas, colaborando com a construção de políticas públicas com cidadania e participação social, com o Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal do Rio Grande do Sul – entidade proprietária do espaço onde hoje funciona a organização.

Cursos e oficinas para a cidadania

Cursos de comunicação comunitária, de tecnologia da informação para o desenvolvimento de softwares livres, de audiovisual, de fotojornalismo, de artes gráficas, oficinas de teatro de animação, percussão e até mesmo de confecção de livros cartoneros. As atividades desenvolvidas no Quilombo do Sopapo são inúmeras. Apesar de existir como Ponto de Cultura desde 2006, somente em 2008 a instituição abriu suas portas, com sede em endereço fixo.

De lá para cá, foram mais de 40 cursos e oficinas, com a participação e formação de mais de 1000 jovens da comunidade. O seu alcance, entretanto, ultrapassa essa marca. Por abrigar um telecentro e uma biblioteca comunitária, o Ponto de Cultura atende centenas de pessoas a cada semana. O grupo possui ainda uma série de parcerias junto a escolas estaduais da região, nas quais desenvolvem atividades artísticas e culturais para a promoção da cidadania.

Mostra de Teatro Comunitario do Quilombo do Sopapo (Foto: Leandro Anton)

Mostra de Teatro Comunitario do Quilombo do Sopapo (Foto: Leandro Anton)

“O Sopapo é o único equipamento de cultura e lazer voltado para jovens com acesso gratuito no bairro. Somos nós quem promovemos também uma ocupação frequente da única praça do Cristal com atividades culturais. Para muitos dos jovens que aqui vivem, o Sopapo é a principal, senão a única, porta de acesso para a cultura”, afirma Leandro Anton.

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Cristina passou de educanda a educadora: “Quero mostrar que eles podem, sim, sonhar”

Cristina da Rosa Nascimento, de 23 anos, é uma das 15 pessoas que passaram pelos cursos do Ponto de Cultura e dele tiram hoje o seu sustento. Atualmente educadora da instituição, ela conheceu o Sopapo em 2009, aos 16 anos de idade. Ainda aluna do ensino médio, ela participou, na própria escola, de uma oficina de fotografia ministrada pelo pessoal do Ponto de Cultura.

Em seguida, inscreveu-se para o curso de audiovisual que dali a alguns meses seria aberto na própria instituição. Como resultado do curso, ela produziu um curta-metragem pelo qual transmitia a sua visão de mundo a partir do próprio referencial: uma jovem negra e de periferia.

“Foi ali que tive o meu primeiro acesso a um trabalho intelectual. Foi ali que eu descobri que eu pensava, tinha voz e poderia colocar para o mundo as minhas ideias, a minha forma de ver o mundo e a sociedade que tinha ao meu redor”, diz.

Também utilizando elementos de sua realidade como inspiração para realizações de trabalhos, ela, junto com alguns outros jovens da comunidade, criou o livro de fotografias Imagens faladas. A obra nasceu a partir do engajamento da comunidade pela sua manutenção, uma vez que havia na época um projeto do governo local para a venda de parte da área do Morro Santa Teresa, incrustado no Cristal.

"Comunicação e Arte: Uma onda no ar" (Foto: Leandro Anton)

“Comunicação e Arte: Uma onda no ar” (Foto: Leandro Anton)

“As escolas públicas, de modo geral, são muito ruins. As oportunidades não existem para o jovem da periferia. Não há horizontes para além da própria escola. O Ponto de Cultura me surgiu como uma oportunidade e eu a agarrei”, afirma Cristina. Atualmente Cristina desenvolve o projeto Ruídos Urbanos, programa de radiovisual do Coletivo Sopapo de Mulheres – um dos vários criados dentro do Ponto de Cultura. Com um recorte de gênero, o programa convida artistas e intelectuais para tratar de questões diversas, de remoções comunitárias a dificuldade de aliar trabalho e maternidade.

A jovem, que tem o sonho de obter um diploma de curso superior, também trabalha como oficineira em uma das escolas parceiras do ponto. A ideia é produzir uma segunda edição do livro de fotorreportagem. Para ela, entretanto, essa oportunidade vem acompanhada de uma responsabilidade.  De educanda, ela passou a educadora.

“Quero mostrar para essa gurizada que eles podem, sim, sonhar. Não precisam estar à margem do processo, não precisam baixar a cabeça. Eles existem, são jovens da periferia e devem ter orgulho disso. Meu papel aqui é empoderar essa gurizada”, afirma.

(*Texto publicado em 5 de maio de 2016)

Fonte: Ministério da Cultura (MinC) https://bit.ly/1q0x2kr

Saiba mais: https://quilombodosopapo.redelivre.org.br/

www.facebook.com/quilombo.dosopapo/

Ludocriarte: um Ponto de Cultura onde todo mundo brinca em serviçoLudocriarte: um Ponto de Cultura onde todo mundo brinca em serviçoLudocriarte: um Ponto de Cultura onde todo mundo brinca em serviçoLudocriarte: um Ponto de Cultura onde todo mundo brinca em serviço

Por IberCultura

EnEm 26, abr 2016 | Em | Por IberCultura

Ludocriarte: um Ponto de Cultura onde todo mundo brinca em serviço

O italiano Paolo Chirolla tinha 18 anos quando desembarcou pela primeira vez no Brasil. Então aluno de um curso superior de Ciências da Educação em Milão, na Itália, ele aproveitou suas férias para trabalhar voluntariamente em um projeto social da cidade de Goiás, localizada a pouco mais de 140 quilômetros de Goiânia, capital do estado que leva o mesmo nome do município que o acolheu – nesse primeiro momento, por um mês e meio.

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Paolo Chirolla fundou a Ludocriarte em 1985 (Foto: Acácio Pinheiro/MinC)

“Sempre fui muito ligado a movimentos sociais. Talvez porque na Itália o voluntariado seja algo muito forte, que está no nosso sangue mesmo. Lá é bem comum participarmos de projetos que auxiliem os outros, sem qualquer remuneração financeira”, afirma Chirolla, hoje presidente da Associação Ludocriarte, um dos mais de 4,5 mil Pontos de Cultura existentes no País.

Cerca de dois anos depois de sua primeira visita ao Centro Oeste brasileiro, o então universitário retornou ao País de mala e cuia. Largou a faculdade e a família na Itália para seguir o seu destino. “Foi mais forte do que eu. De alguma maneira, sempre soube que não teria uma vida tradicional”, diz.

O italiano passou por uma série de projetos e instituições até que, em 2005, fundou a Associação Ludocriarte em uma casa de São Sebastião, região administrativa do Distrito Federal. Lá, ele montou uma brinquedoteca comunitária para atender crianças e jovens de baixa renda. Por meio do resgate de jogos e brincadeiras tradicionais, a instituição promove um trabalho de educação e cultura com a comunidade.

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Contação de histórias está entre as atividades realizadas com as crianças (Foto: Acácio Pinheiro/MinC)

 

“Para nós, brincar é tudo. Brincar é cultura. É no brincar e na linguagem lúdica que a criança acessa todas as outras coisas. Fizemos um trabalho inverso, tentando incluir tudo dentro do brincar, e não o contrário”, destaca Chirolla. Na Brinca, como é carinhosamente apelidado o local, atividades como teatro, música e cinema são apresentados às crianças por meio de brincadeiras. Elas absorvem o que lhes é passado e são sempre estimuladas a criar suas próprias obras.

Segundo Paolo, normalmente, os produtos culturais voltados às crianças são pensados e produzidos por adultos. Eles têm o seu valor, é claro, mas também tolhem o potencial criativo dos pequenos. Dificilmente a arte e a cultura são pensadas em parceria com as crianças. “O nosso foco sempre foi fomentar o lúdico dentro da cultura da infância. O que é a cultura para criança se não o brincar? Para nós, o brincar é o berço de toda a cultura infantil”, afirma Chirolla.

Atualmente, a Ludocriarte atende a 85 crianças, a maior parte delas entre 6 e 14 anos. Elas frequentam a instituição de segunda a quinta-feira, sempre no turno contrário às aulas. Além de utilizar a brinquedoteca comunitária, com brinquedos e jogos de tabuleiros, os alunos participam de aulas lúdicas de informática e de oficinas, dentre as quais de contação e criação de histórias, de musicalização e de hip hop. As crianças também utilizam a rua para brincadeiras mais ativas, como pega-pega, queimada e futebol.

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Além de usar a brinquedoteca, as crianças participam de aulas lúdicas de informática (Foto: Acácio Pinheiro/MinC)

Um Ponto de Cultura e seus filhos

Em 2010, a Ludocriarte foi selecionada como Ponto de Cultura. Com os recursos repassados pelo Ministério da Cultura, a instituição montou um laboratório de informática e comprou uma série de instrumentos musicais para as crianças. O apoio foi também importante para a concepção de oficinas de contação de histórias, que resultaram na publicação de dois livros produzidos pelos próprios alunos.

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Leia na íntegra o livro Era outra vez: https://bit.ly/1WeVw46

Lançado em 2012, o primeiro livro, denominado Era outra vez… Histórias clássicas recriadas pelas crianças do Ponto de Cultura Ludocriarte, trouxe recriações de obras clássicas como A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, entre outras. O segundo livro do projeto, “Era outra vez… Histórias Mágicas criadas pelas crianças do Ponto de Cultura Ludocriarte”, foi lançado em 2014 e trouxe como pano de fundo um mundo mágico, com fadas, princesas e dragões.

Em 2016, a Ludocriarte deu início a uma terceira fase desse projeto. Em comemoração aos 10 anos da instituição, as crianças produzirão um novo livro, que terá justamente as brincadeiras populares como inspiração. “O trabalho que desenvolvemos com as crianças para a elaboração das histórias é sempre muito rico. Começa com a contação de muitas histórias e, por meio do brincar, começamos a criar em cima delas. Desta vez, quem sabe, poderemos criar uma narrativa com a dona Chica e o gato, por exemplo”, explica Isabela Leda, psicóloga e oficineira voluntária de criação de histórias, em referência à cantiga tradicional Atirei o Pau no Gato.

Lucas Alves de Melo, de 10 anos, é um dos mais empolgados com as criações. “O mais legal da brinquedoteca é que aqui a gente aprende brincando. O trabalho com os livros foi bastante legal. Ver eles prontos é emocionante. É quase como se fosse um filho, afinal, eu ajudei a criar”, diz o garoto.

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Oficina de música (Foto: Acácio Pinheiro/MinC)

Além do livro propriamente dito, desta vez as crianças trabalharão também na concepção de um DVD de videoclipes, com músicas e vídeos produzidos por eles próprios. Uma das músicas, inclusive, já foi composta e tem sido ensaiada pelas crianças. Com o título “Há dez anos”, ela retrata um pouco da atmosfera do espaço. “Há dez anos tem muita brincadeira / Há dez anos tem muita compreensão / Há dez anos tem muita amizade / Há dez anos trabalhando em união (…) Felicidade é estar sorrindo / Aprendendo a ser cidadão / Sendo aceito do jeito que sou / Melhor caminho melhor opção.”

Brincadeira também é coisa séria

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(Foto: Acácio Pinheiro/MinC)

Não são raras as vezes que as brincadeiras ganham um ar mais sério. Por meio delas, questões como o racismo e bullying são trabalhadas junto aos pequenos e, sem perceber, eles acabam absorvendo valores que lhes serão bastante úteis para a vida toda.

“Foi aqui que eu aprendi a ter disciplina, a respeitar os colegas e as diferenças”, afirma Maikon Daniel da Silva Lopes, de 14 anos. O jovem frequenta a instituição desde 2006 e, apesar de não participar mais das atividades, está sempre presente. “Quero me tornar um brinquedista. Enquanto isso não acontece, tento ajudar eles como posso”, diz.

Para sua mãe, Rabiana Pereira da Silva, a instituição foi de extrema importância para a criação de seu filho. “O Maikon sempre foi uma criança ativa, que não para quieta. Se ele não tivesse essa oportunidade, provavelmente estaria na rua, brincando sem segurança. Na brinquedoteca, toda a sua energia se volta para as oficinas e isso fez dele um menino bastante criativo. Ele está tendo acesso a uma cultura que eu não teria condições de dar”, afirma ela.

Às sextas-feiras, a Ludocriarte é fechada para balanço. Sem a presença das crianças, brinquedistas, oficineiros e monitores se juntam para uma reunião pedagógica. “Esses encontros são extremamente importantes para o funcionamento da instituição. É um espaço no qual podemos expor as nossas dificuldades e o bom disso é que todos buscam uma solução conjunta para qualquer problema que apareça, seja com um aluno ou com uma turma específica”, diz a estudante de pedagogia e brinquedista Darleane Silva Santos, de 21 anos.

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(Foto: Acácio Pinheiro/MinC)

Para Paolo Chirolla, a atenção e o investimento nos educadores são fundamentais para o sucesso da Ludocriarte. “Se não fizéssemos essas reuniões, muito se perderia. Eles provavelmente seriam engolidos pela rotina e logo se sentiriam desmotivados”, afirma o presidente da instituição, que não poupa elogios a seus aprendizes.

“Trabalhar com as crianças é algo que nos dá um prazer imensurável, mas o que mais me motiva dentro desse trabalho é a participação dos educadores. Isso me deixa realmente tocado. De alguma forma, revejo a minha juventude por meio do entusiasmo desses garotos e garotas”, afirma, visivelmente emocionado.

Texto: Cristiane Nascimento (Ascom/MinC)

Fotos: Acácio Pinheiro (Ascom/MinC)

Fonte: Ministério da Cultura (MinC)

Zehma e a Rede Ajuricaba, a rede de resistência dos Pontos de Cultura do ParáZehma e a Rede Ajuricaba, a rede de resistência dos Pontos de Cultura do Pará

Por IberCultura

EnEm 08, abr 2016 | Em | Por IberCultura

Zehma e a Rede Ajuricaba, a rede de resistência dos Pontos de Cultura do Pará

Vem do século 18 a história que inspirou a Rede Ajuricaba – Rede Paraense dos Pontos de Cultura, que atua desde 2010 na articulação e mobilização em torno da Lei Cultura Viva no Brasil. Ajuricaba foi um índio tupinambá que se rebelou contra a colônia portuguesa e se tornou um ícone da resistência indígena na Amazônia. Entre 1722 e 1727, nenhuma embarcação portuguesa conseguia navegar no Rio Negro sem sofrer ataques dos manaús, liderados por ele. Em 1728, quando vieram os contra-ataques com soldados armados com bombas e fuzis, o herói rebelde enfim foi capturado. E atirou-se à água, mesmo com os ferros nos tornozelos, preferindo morrer a ser subjugado.

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Zehma: Cultura Viva é seu tema de doutorado (Foto: Oliver Kornblihtt)

“A gente usou a imagem do Ajuricaba para dar mesmo esse sentido de resistência aos Pontos de Cultura da Amazônia”, conta José Maria Reis, o Zehma, um dos idealizadores da iniciativa. “Porque a Rede Ajuricaba nada mais é do que o processo de resistência da rede de Pontos de Cultura do estado do Pará. E a rede criou uma cartilha (aberta, em creative commons) que mostra como um Ponto de Cultura pode mobilizar sua comunidade para discutir a Lei Cultura Viva. É preciso popularizar a lei, a gente precisa ajudar a sociedade a conhecer a Política Nacional Cultura Viva. O povo brasileiro precisa saber que existe uma lei que o ampara em toda sua diversidade cultural.”

Produtor cultural há 20 anos, professor universitário, bacharel em turismo, mestre em geografia e doutorando em desenvolvimento socioambiental na Universidade Federal do Pará (UFPA), Zehma conheceu o Cultura Viva em 2004, quando era dirigente da ONG Argonautas Ambientalistas da Amazônia. Já vinha trabalhando nessa perspectiva de trabalho social da cultura, com foco na educação e no meio ambiente, e ficou bastante interessado no conceito que se expressava na equação “cultura + natureza = Cultura Viva”.

Protagonismo juvenil

Em 2005, no segundo edital de Pontos de Cultura lançado pelo Ministério da Cultura (MinC), lá estavam Zehma e os Argonautas com a proposta do Ponto de Cultura Ananin. O projeto, realizado no município de Ananindeua (na região metropolitana de Belém) em parceria com entidades e instituições locais, tinha como objetivos desenvolver processos de produção e disseminação cultural, fazer inclusão social e digital, valorizar e resgatar expressões culturais populares locais, promover educação ambiental e popular, defender a vida, a cidadania e a preservação ambiental.

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Oficina de artesanato marajoara

“Juventude, comunicação comunitária e protagonismo local sempre foram o mote do trabalho”, ressalta Zehma. “Em 2008, com essa mesma perspectiva, mas ampliando para o estado do Pará, fizemos o projeto do Pontão de Cultura Rede Amazônica de Protagonismo Juvenil, focando a questão da comunicação comunitária (vídeo, fotografia e texto) e das potencialidades locais. No Marajó, por exemplo, trabalhamos com artesanato do couro de búfalo. A juventude resgatou o artesanato e ressignificou a festividade de São Sebastião em Cachoeira do Arari, uma tradição com mais de 100 anos de que eles haviam se desligado.”

Tanto o Ponto de Cultura Ananin como o Pontão da Rede Juvenil eram voltados para a expertise da própria organização – afinal, os Argonautas já trabalhavam na área de desenvolvimento (habitacional, ambiental, cultural, social), já tinham um programa de protagonismo juvenil. Por isso também no Ponto e no Pontão o trabalho girava em torno desses três eixos: o desenvolvimento juvenil (planejamento e organização comunitária dos jovens), a comunicação comunitária (oficinas de radioweb, produção de texto, edição de imagens) e o desenvolvimento regional (as oficinas de artesanato marajoara, a contação de histórias, etc).

Bons resultados

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Stone: “O rap pode ser uma forma de mudança”

“Há casos fantásticos de jovens que, por conta das atividades dos Pontos de Cultura, saíram da marginalidade, usaram o hip-hop para ressignificar a vida e ajudar outros jovens a sair da criminalidade”, afirma Zehma. O rapper Stone é um deles. No documentário Vozes jovens da Amazônia, uma das ações realizadas no Pontão, ele fala sobre sua experiência no grupo MP – Mensageiro da Paz:

“O que quero fazer através da dança, do rap e do grafite é tirar crianças, adolescentes e jovens das ruas, gente que por falta de oportunidade se mete com as drogas. Com 14 anos, me meti numa vida errada (…). Mas conheci o rap e, com o tempo, fui entendendo o que eles queriam dizer. O rap pode sim ser uma forma de mudança. Além de manter a mente ocupada com rimas, letras, com dança, você vai poder contar o que acontece na sua comunidade, com seus manos, com seus irmãos”.

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Jader: “É preciso ‘bandalargar’ o Brasil”

Jader Gama, por sua vez, garante à equipe do vídeo que o Ponto de Cultura Poraquê é “sua vida”. “Lá consigo dar vazão para os meus sonhos, trabalhar com quem eu gosto e não ser escravo do relógio. O Poraquê também me deu a possibilidade de conhecer o Brasil, compartilhar meus conhecimentos e contaminar as pessoas num sonho, no sentido de buscar um desenvolvimento regional que não seja baseado no extrativismo predatório, e sim no conhecimento digital e cultural. Isso é o que me move hoje.”

Para Jader, quanto mais as pessoas tiverem conhecimento digital e entenderem a filosofia do software livre, mais elas vão defender a Amazônia. “É preciso investir mais em educação, respeitando as culturas tradicionais, sim, mas também colocando internet de qualidade nas escolas, nos municípios. Como dizia Gilberto Gil, é preciso ‘bandalargar’ o Brasil. A questão da comunicação é fundamental. Não só ter acesso à informação, mas  gerar a informação. Está cheio de talento aqui. Se a gente conseguisse deixar as pessoas em suas cidades, viajando pelo mundo pela internet, conhecendo outras culturas, a gente estaria contribuindo para que o Brasil, a América Latina, o mundo, fosse muito melhor.”

De geração para geração

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Rubia aposta nos jovens como multiplicadores

Rubia Goreth, do Ponto de Cultura Ribeirinha de Santarém, viu uma tradição do século 17 voltar a ganhar força entre os jovens de sua comunidade: o artesanato das cuias. Um trabalho passado de mãe para filha, de geração para geração, fruto de um processo natural (a cuieira é uma árvore muito presente na região), mas que andava meio esquecido até a criação da Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém, em 2003. “É um processo histórico, cultural, da identidade do Pará, que a gente conhece desde sempre”, comenta a jovem. “Antes as mulheres faziam com grafismo de floral, uma influência europeia. Depois do projeto foi feito um estudo com todos os grafismos que retratam a cultura local, das tribos indígenas que habitaram a região, e foram levantados mais de 100 padrões.”

Quando a associação foi reconhecida pelo MinC como Ponto de Cultura, em 2004, ela diz que isso ajudou a chamar os jovens para o processo. “A rede prega o protagonismo juvenil, e o Ponto de Cultura, o protagonismo de modo geral, com a comunidade se apropriando do que é seu de fato. Aqui a gente sempre teve dificuldades com os jovens, há muita evasão. O que queremos é aproximar do artesanato os jovens que ficam na comunidade. Não só as mulheres em seus processos de produção, mas os rapazes também, em tudo que envolve divulgação, mídia, ilha de edição. A ideia é que eles deem continuidade, se transformem em multiplicadores para a comunidade.”

Já em Cachoeira do Arari, Rafael viu sua história recomeçar no Ponto de Cultura Museu do Marajó, em 2004, quanto teve a oportunidade de conhecer culturas que não conhecia. Acabou virando coordenador do cineclube do Marajó. “O Ponto de Cultura me possibilitou trabalhar com audiovisual, até hoje me pergunto: ‘Meu Deus, há coisa melhor no mundo que trabalhar com cinema?”. Na virada de 2008 para 2009, o grupo de Rafael teve a ideia de fazer um documentário sobre a festividade de São Sebastião. “Foi complicado, tudo corrido”, mas valeu a pena. São essas imagens que encerram Vozes jovens da Amazônia, o documentário de 29 minutos assinado por 16 Pontos de Cultura do Pará.

A força do legado

“Essa experiência (do Pontão de Cultura Rede Amazônica de Protagonismo Juvenil, registrada no vídeo) deixou um legado forte, que foi a articulação de uma rede paraense de Pontos de Cultura. A partir da rede juvenil, a gente criou a Rede Ajuricaba”, comenta Zehma, referindo-se ao projeto apresentado em 2010, para o Prêmio Tuxaua do MinC, como a continuidade do processo que vinha sendo desenvolvido no estado. A ideia, à época, era levar aquela metodologia de mobilização social a toda a região amazônica. A iniciativa, no entanto, acabou se mantendo no Pará.

Em 2015, com o Edital Cultura de Redes, lançado pela Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC/MinC), a proposta da Rede Ajuricaba foi reeditada para trabalhar já na perspectiva da Lei Cultura Viva – a Lei 13.018, que foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em julho de 2014 e transformou o programa Cultura Viva em política de Estado. “Em 2010, a metodologia era uma tecnologia social de mobilização pró Lei Cultura Viva. Organizávamos reuniões comunitárias para discutir a lei, buscávamos aprová-la naquele momento. Agora, a ideia é implementar a Lei Cultura Viva”, explica.

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Zehma se dirige ao ministro Juca Ferreira em reunião da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, em 29 de julho de 2015

Zehma se dirige ao ministro Juca Ferreira em reunião da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, em  julho de 2015

Os Argonautas Ambientalistas da Amazônia sempre trabalharam com o conceito de organização em rede. Inspirados por pesquisadores como Augusto de Franco, eles logo conceberam o formato de rede sistêmica, uma rede que amarrasse ideias e conectasse pessoas. “É uma rede aberta. Pra gente é fundamental que os inputs e outputs (entradas e saídas) possam passear, a rede não pode ser fechada. Outra questão fundamental é a concepção de uma rede a partir da teoria da complexidade. A rede dos Pontos de Cultura não pode ser mecânica, automática. É complexa, assim como são os rizomas da ecologia natural. Rede, para nós, nada mais é que o próprio conceito de Cultura Viva”, compara Zehma.

Integrante da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, Zehma é pesquisador do assunto. Cultura Viva é, inclusive, seu tema de doutorado. “Quando a poesia virou política: percurso dos Pontos de Cultura no Brasil ao longo de 10 anos” é o título do artigo que escreveu como início de pesquisa. “Dez anos é pouco tempo para perceber de forma concreta as mudanças, mas acho que já houve uma mudança imensa de postura politica a partir do Cultura Viva e dos Pontos de Cultura”, acredita. “Hoje, a cultura popular, tradicional, de periferia, tem uma visibilidade maior junto à sociedade e aos governantes. Mas é preciso avançar, conquistar mais direitos sociais. Os Pontos de Cultura têm ajudado nisso. Esses 10 anos são apenas a gênese desse processo.”

Saiba mais

Ouça o programa radiofônico, resultado da Oficina de Produção Transmidia, realizada em Belém, em 2011:

https://soundcloud.com/idademedia/1-programa-rede-ajuricaba-no

Assista ao vídeo Vozes jovens da Amazônia:

https://www.youtube.com/watch?v=GX5ln7h81lc

Veja também:

www.facebook.com/Rede-Ajuricaba-Rede-Paraense-de-Pontos-de-Cultura

Doroty Marques e a Turma que Faz: caminhando juntos por um mundo melhorDoroty Marques e a Turma que Faz: caminhando juntos por um mundo melhorDoroty Marques e a Turma que Faz: caminhando juntos por um mundo melhorDoroty Marques e a Turma que Faz: caminhando juntos por um mundo melhorDoroty Marques e a Turma que Faz: caminhando juntos por um mundo melhorDoroty Marques e a Turma que Faz: caminhando juntos por um mundo melhor

Por IberCultura

EnEm 07, mar 2016 | Em | Por IberCultura

Doroty Marques e a Turma que Faz: caminhando juntos por um mundo melhor

Doroty Marques. arte-educadora

Doroty Marques

Doroty Marques tem 70 anos e anda desde que nasceu. Já caminhou pela Floresta Amazônica, com índios e seringueiros, e deu um jeito de produzir operetas ali. Com plantadores de banana no litoral paulista, nos presídios, no sertão, na favela, na rua, no cerrado… São 40 anos caminhando pelo Brasil produzindo operetas com crianças e jovens. “Uso o termo opereta porque em minhas obras não existe muito diálogo, só ritmo, cor, movimento e música”, explica a arte-educadora e musicista que desde 2003 está à frente do projeto Turma que Faz, na Vila de São Jorge, na Chapada dos Veadeiros (Goiás).

Ali, no povoado de 600 habitantes a 230 quilômetros de Brasília, onde disputa espaço nas ruas com tico-ticos e sabiás, ela trabalha atualmente com 50 meninos e meninas a partir dos 5 anos de idade em atividades extracurriculares semanais. Quatro vezes por semana eles estão lá – durante o dia o espaço recebe as crianças e os professores; à noite, jovens de 14 a 22 anos.

Já foi mais, bem mais. Quando tinha patrocínio, a Turma chegou a reunir mais de 200 crianças e jovens das redondezas (São Jorge, Cavalcante, Alto Paraíso). Com a apresentação de espetáculos nas comunidades e as oficinas oferecidas aos professores durante três anos, o projeto atingia mais de 3 mil pessoas na Chapada dos Veadeiros.

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Cartilhas da Turma que Faz

“A cabana Turma Que Faz é muito livre. O menino entra na roda, fica ou não. Não existe formalidade, regras. Criamos nossas próprias leis”, diz Doroty. “Quando tinha dinheiro, tínhamos argila (o cerrado recriado no barro), pintura, produzíamos cartilhas (com elas mudamos até os nomes das ruas de São Jorge), dança, música, esporte, informática, construção de instrumentos. Hoje, temos música, percussão e continuamos com a pintura, a argila, com os multiplicadores formados pelo projeto Turma Que Faz. Por enquanto, todo mundo se encontra, cria, produz, apresenta, por amor. Quer melhor?”

 

Primeiros tempos

Doroty Marques chegou a São Jorge em 2003, como convidada do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. Chegou para uma apresentação musical ao lado do irmão, Dércio Marques, e acabou ficando. “Nunca tinha vindo à vila”, conta. “Eu vi e senti que não existia um espaço cultural para crianças e jovens. Conversei com a Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, com a Associação dos Garimpeiros e iniciamos o sonho coletivo que dura até hoje.”   

20213185245_4f7561611b_kEla fazia isso sempre. Em todos os lugares por que passava, pesquisava as chances dos jovens e crianças encontrarem um lugar onde se sentissem em casa e conseguissem desenvolver sua sensibilidade. “Fico triste em constatar que no Brasil poucos espaços de arte e ecologia sejam criados e mantidos para formar gerações futuras”, comenta.

Cantora de programas de calouros na infância, no Rio de Janeiro, Doroty morou no Uruguai nos anos 1960 e passou um bom tempo apresentando-se em casas noturnas de São Paulo. O primeiro disco, Semente, veio em 1978 pelo selo Marcus Pereira. Outros álbuns viriam nas duas décadas seguintes, a maioria ao lado do irmão Dércio Marques. Os estúdios, no entanto, foram ficando cada vez mais distantes, dando lugar ao que mais interessava à musicista: as operetas populares, as atividades de arte-educação.

Ensaio da Turma Que Faz com Doroty Marques, na Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, para a Peña Folclórica

Ensaio da Turma Que Faz com Doroty Marques, na Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge

O trabalho com crianças e adolescentes começou quando ela tinha 27 anos. “Vivenciei nos anos 1980 o mundo da televisão, teatro, gravadoras, com discos em selos independentes. Senti que ali não era meu lugar, já estava cheio de bons artistas, não precisavam de mim também. E fui para as favelas.” Pelo trabalho nas favelas de São Paulo, realizado por meio da Secretaria do Estado do Menor, chegou a ganhar um prêmio da Organização das Nações Unidas (ONU).

Em 1992, Doroty levou 200 meninos e meninas ao palco da Eco-92, a conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro. Eles apresentaram a opereta “O dia em que nasceu a noite”, questionando o aquecimento global. Outro trabalho marcante foi “Cadê meu rio que estava aqui?”, envolvendo escolas públicas da região de Penápolis (São Paulo). O projeto contribuiu para o replantio da mata nativa dos arredores da cidade e o plantio de 5.000 mudas de árvores frutíferas nos quintais das casas.

Olhando para o outro e para a natureza

Em São Jorge, todos os anos é apresentada uma opereta no Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. Em 2015, foi a vez da “Saga da Maria Manteiga”. Dividido em 14 atos, ao som de tambores, violas e sanfona, o espetáculo aborda o mundo virtual de hoje em dia, e de como era antes, tentando mostrar que tecnologia é bom, sim, mas é preciso diminuir um pouco seu uso e olhar mais para o que está em volta, para os animais, para a natureza, para as pessoas – fora da telinha do computador ou do celular. Um tema mais do que apropriado para os dias atuais, embora no vilarejo o sinal de internet caminhe a passos lentos e os meninos ainda corram nas ruas, disputando espaço com passarinhos.

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Opereta A saga da Maria Manteiga, no XV Encontro de Culturas (Foto: Leonil Junior)

“Conheci lugares mágicos, malditos, encantados, violentos, formados por sociedades que só correm atrás de um ídolo: consumo”, afirma Doroty. “Em São Jorge, as pessoas se gostam, se respeitam, se conhecem, valorizam – a si próprias e à natureza. Não temos fome, prostituição, analfabetismo, indiferença. Buscamos criar uma turma mais humana.”

 

Jefferson Passos, 19 anos, conta que antes de Doroty criar a Turma que Faz em São Jorge, diversão para as crianças dali era só futebol. Ele tinha 9 anos quando começou no projeto. Hoje, está terminando o ensino médio em Alto Paraíso, participa da produção do Encontro de Culturas e aplica na prática muitos dos conhecimentos que obteve ali mesmo, nas oficinas da Turma que Faz, nas atividades da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge (que foi criada em 1997 e é Ponto de Cultura desde 2005).

“Cada dia eles vão me ensinando uma coisa nova. Todos aqui me passam algo para que eu possa expandir no futuro”, afirma o rapaz, que depois de aprender como fazer planilha e site, por exemplo, quer saber como inscrever projetos em editais para, quem sabe, ser curador do Encontro de Culturas em 2020. “Também quero fazer Direito. Ou administração. Locutor de rádio também seria uma ideia”, diz, entre risos.

A capacitação depois da sensibilização

Foi pensando no futuro dos meninos que ali começaram a ver o mundo com outros olhos que Doroty também embarcou, em 2015, em um projeto voltado para a capacitação de jovens da região: o Todos Nós. A iniciativa, mais uma parceria com a Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, é dirigida a potenciais agitadores culturais que possam desenvolver projetos de gestão e produção cultural. “A Turma Que Faz se preocupou em motivar, desenvolver, transparecer a sensibilidade de cada um, usando a arte como linguagem. O Todos Nós se preocupa com a parte técnica, formas de ele sobreviver da arte, com a arte, no mundo de hoje”, compara a arte-educadora.

Doroty Marques e a turma da oficina de pintura e cenografia do projeto Todos Nós, em São Jorge

Doroty Marques e a turma da oficina de pintura e cenografia do projeto Todos Nós

Patrocinado pela Petrobras, o projeto Todos Nós nasceu com a chegada do asfalto à Vila de São Jorge, o que vem aumentando o fluxo de visitantes na região e exigindo uma preparação dos moradores em termos turísticos e educacionais. Oito oficinas de capacitação foram lançadas em 2015, divididas em três módulos: gerencial, técnico e artístico. As duas últimas vão ocorrer no primeiro semestre de 2016.

Peña folclórica é o primeiro espetáculo a unir os dois projetos, a Turma que Faz e o Todos Nós. Apresentado na 15ª edição do Encontro de Culturas, em julho de 2015, e ao longo do ano na Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, reúne músicas sul-americanas – de cantos folclóricos brasileiros a composições de Mercedes Sosa e Violeta Parra –, violões, violas, percussão, dança e acrobacia em tecido. A montagem já foi toda produzida pelos jovens tendo em vista a geração de renda e a sustentabilidade da arte.

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Peña folclórica: Doroty e a Turma  cantam a “América do Sul esquecida” (Foto: Juliana Nallini)

Utilizando a arte e o meio ambiente como linguagem sensibilizadora e realizadora, Doroty acabou criando uma prática pedagógica única, vivenciada por milhares de crianças e jovens de vários cantos do Brasil. Em suas andanças, essa artista popular de voz rouca e alma livre já passou pelos estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Mato Grosso, Amazonas, Pará, Rondônia, Acre… Como ela diz, são 40 anos caminhando pelo Brasil, produzindo operetas com meninos e meninas, respeitando a natureza, pensando na formação e na subsistência das gerações futuras.

“Um artista social tem que ajudar em todos os níveis a comunidade em que ele está envolvido”, acredita. “Não fiquei rica e nunca ficarei. Mas planta-se uma energia, uma união, um troca-troca de conhecimentos, de tristeza, de alegria, que me realiza como ser humano e artista, me preenche. É difícil você ir embora e deixar aquela comunidade para recomeçar em outro lugar com a força da anterior. Me sinto necessária, frutuosa para a comunidade. E isso me realiza.”

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(Foto: Leonil Junior)

(*Texto publicado em 7 de março de 2016)

 

Saiba mais:

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Juliano Basso e a Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge: uma história de encontros

 

 

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Por IberCultura

EnEm 25, fev 2016 | Em | Por IberCultura

Juliano Basso e a Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge: uma história de encontros

“O povo tem de fazer mais terapia de roça, sabe? Ir pro mato, pegar uma enxada, plantar uma horta, ver as plantas nascerem, ver outro tipo de resultado. Senão é só trabalho, dinheiro, supermercado, shopping. A vida fica frustrante.” É assim, acreditando na sabedoria dos povos tradicionais, que vivem há tanto tempo em sintonia com a natureza, que Juliano George Basso pensa no futuro. “Nossos professores de tecnologia são os povos tradicionais, é com eles que a gente deve reaprender como fazer. A cidade ficou inchada, as pessoas estão muito frustradas. É preciso reconectar para cá, puxar para o rural, repensar o modelo de cidade.”

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Juliano chegou a São Jorge em 1996 (Foto: Oliver Kornblihtt)

Faz 20 anos que Juliano saiu de Goiânia para morar na Vila de São Jorge, povoado com 600 habitantes a 35km de Alto Paraíso (GO), na entrada do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. “Quando cheguei a São Jorge me surpreendi com a riqueza cultural das comunidades da região e, também influenciado pelas minhas experiências de viagem no Brasil e por outros países, senti a necessidade de criar um espaço democrático para as manifestações da cultura popular tradicional”, conta. E foi de forma colaborativa com a comunidade que ele criou ali, em 1997, a Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, e em 2001 começou a realizar o Encontro de Culturas, que aos poucos foi se transformando em uma conferência de saberes.

“Fomos guiados pela vontade de fazer com que comunidades nunca antes ouvidas pelo poder público pudessem erguer a voz e mostrar toda sua sabedoria. Foram os povos indígenas, quilombolas, mestres, brincantes, catireiros, violeiros, artistas e todos os representantes da riqueza do patrimônio cultural imaterial produzido nos interiores do Brasil que fizeram esse chamado”, afirma.

Roda de conversa na Casa de Cultura durante o Encontro de Culturas de 2015. Foto: Leonil Junior

Roda de conversa no “Cavaleiro” durante o Encontro de Culturas (Foto: Leonil JR)

“Cavaleiro”, o Ponto de Cultura

A Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge nasceu em meio ao cerrado (e terra e poeira e pedra) como um projeto audacioso, concretizado em paredes de pedra toá, típica da região. O espaço, conhecido pelos moradores da vila como “o Cavaleiro”, é Ponto de Cultura desde 2005 e abriga desde 2001 o Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. São 15 anos de espetáculos que unem música, dança e fé, refletindo as diversas manifestações da cultura popular tradicional do Brasil.

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(Fotos: Bernardo Guerreiro)

 

Mais de 300 grupos e artistas do país já participaram do evento – da Folia do Divino de Crixás (ES) ao Lundu de Lezeira (PI), do Maracatu Leão Coroado (PB) às Meninas de Sinhá (MG). A prioridade, no entanto, é para os grupos e manifestações da Chapada: a catira e a curraleira dos foliões de São João da Aliança; a sussa dos Kalungas do Vão do Moleque e do Vão das Almas; o lundu e o batuque da Caçada da Rainha, festa tradicional da cidade de Colinas do Sul; a congada da comunidade de Niquelândia, com seus penachos inspirados nos índios Avá-canoeiro.

Nos últimos anos, o Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros vem abrindo espaço não só para as manifestações de música, dança, teatro e artes plásticas, mas também para o debate sobre políticas públicas para as culturas tradicionais e sobre resistência, economia da cultura e sustentabilidade, além da valorização da gastronomia do cerrado.

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Reunião da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura durante o XV Encontro de Culturas, em julho de 2015. (Foto: Bernardo Guerreiro)

Oficinas, encontros e rodas de prosa

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A Feira de Experiências (Foto: Bernardo Guerreiro)

Entre as iniciativas realizadas durante o Encontro de Culturas estão as rodas de prosa – que têm como objetivo a troca de experiências, histórias de vida, práticas e tradições culturais –, a Feira de Experiências Sustentáveis do Cerrado (uma parceria com o Sebrae para divulgar a produção artesanal das comunidades da região) e diversas oficinas (bordados, buriti, afoxé, cerâmica, brinquedos, maquetes de papelão, cerveja artesanal e construção de rabeca são algumas delas).

Também há o Encontro de Capoeira Angola, já no sétimo ano, e o Encontro de Lideranças Quilombolas de Goiás, que já teve três edições com a proposta de promover a integração entre os líderes das diversas comunidades, para que discutam políticas públicas voltadas aos povos tradicionais. A Fundação Palmares reconhece 22 comunidades quilombolas no estado, sendo a maior delas a dos Kalungas.

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IX Aldeia Multiétnica, em julho de 2015 (Foto: Oliver Kornblihtt)

Aldeia Multiétnica: vivência como modo de ação

Uma das principais ações do Encontro de Culturas, a Aldeia Multiétnica surgiu em 2007 como uma forma de colocar o público em contato direto com os costumes, tradições e modos de vida dos povos indígenas. Trata-se de um espaço de integração, onde são realizadas rodas de prosa, oficinas de artesanato, pinturas corporais, exposições fotográficas e exibições de vídeos produzidos pelos índios. Ali entram em debate questões relacionadas a território, à participação dos índios no ambiente urbano, ao patrimônio estético e cultural dos povos, suas reminiscências na cultura popular e a educação especializada.

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(Foto: Oliver Kornblihtt)

Em 2011, o projeto ganhou outro formato com a construção de uma aldeia às margens do Rio São Miguel. A ideia é que cada povo tenha uma casa temporária no local, formando de fato uma aldeia multiétnica. O novo modelo começou com os Yawalapiti, que construíram uma oca xinguana com a ajuda da comunidade Kalunga. Em 2012, foi a vez da etnia Kayapó, e em 2013, da Krahô. Em 2014, os índios Fulni-ô construíram a quarta moradia na aldeia e receberam representantes dos povos Krahô, Kayapó, Yawalapiti, Fulni-ô, Xavante, Kariri-Xocó, Kaxinawá, Trucá e Wará.

Encontroteca, o museu digital

Em 2010/2011, a Casa de Cultura obteve recursos do Programa Goyazes, do Governo do Estado de Goiás, para implementar o Projeto Encontroteca: um Museu Digital. O objetivo era reunir a memória dos 10 anos do Encontro de Culturas. Um material extenso: 363 horas de vídeos, mais de 25 mil fotos, 18 horas de áudio com entrevistas e músicas, e 401 notícias, entre pesquisas, entrevistas e artigos sobre mais de 140 grupos de cultura tradicional goiana e de outras regiões do Brasil.

encontroteca1Concebida como um museu digital, a Encontroteca surgiu para conectar em redes os grupos de cultura tradicionais espalhados pelo país, disponibilizar conteúdos com foco na preservação da memória e consolidar um mapa georreferenciado desses grupos, oferecendo informações como local, ano de fundação, data da festa local, endereço da sede, representante, telefone e e-mail para contato.

A primeira etapa do projeto resultou na construção da plataforma digital (www.encontrodeculturas.com.br/encontroteca) e na organização do material produzido ao longo dos 10 anos do Encontro de Culturas: pesquisa, catalogação e edição de fotos, textos e áudios, decupagem de vídeos, criação do banco de dados, inserção do conteúdo produzido e editado na plataforma digital e produção de um DVD.

Peña Folclórica 2 - Turma Que Faz e Doroty Marques_créditos Juliana Nallini

Peña folclórica, espetáculo da Turma que Faz apresentado ao longo do ano na Casa de Cultura. (Foto: Juliana Nallini)

Todos Nós e Turma Que Faz

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Oficina de cenotécnico do projeto Todos Nós. (Foto: Juliana Nallini)

O trabalho social com crianças e jovens da região se dá por meio do projeto Turma Que Faz, coordenado pela artista popular Doroty Marques, em parceria com a Casa de Cultura desde 2003. São atividades educativas, artísticas, culturais, esportivas e ambientais que buscam desenvolver o capital humano a partir de experiências que promovam a autoestima, a comunicação, a convivência familiar e comunitária, o reconhecimento do contexto em que vivem e a consciência ecológica e patrimonial. O projeto formou jovens artistas que tocam, dançam, fazem acrobacias em tecido e pintam. Tudo isso pode ser visto no espetáculo Peña folclórica, que estreou em 2015 e realiza apresentações durante o ano todo na Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge.

Em 2015, também foi lançado o projeto Todos Nós, voltado para a capacitação de potenciais agitadores culturais locais no desenvolvimento de projetos de gestão e produção cultural. A iniciativa veio com a chegada do asfalto à via de acesso da Vila de São Jorge e o consequente aumento do fluxo de turistas na região. Oito oficinas de capacitação foram lançadas, divididas em três módulos: gerencial, técnico e artístico. As duas últimas estão previstas para o primeiro semestre de 2016.

Integração com a América Latina

O tema do XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, na segunda quinzena de julho de 2016, será “Integração dos povos tradicionais das Américas”. “Ainda não fechamos a programação, mas queremos convidar grupos de cultura tradicional da América Latina para que possam apresentar sua cultura, seus costumes e tradições no Brasil por meio do evento”, adianta o idealizador do encontro, que foi eleito pelos moradores presidente da Associação Comunitária da Vila de São Jorge de 2006 a 2008.

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O grupo mexicano Venado Azul foi uma das atrações da 15ª edição do encontro (Foto: Bernardo Guerreiro)

Ex-aluno de filosofia e história da Universidade Federal de Goiás (UFG) e de artes plásticas na Universidade de Brasília (UnB), Juliano Basso diz que encara como sua missão, assim como a da Casa de Cultura, proporcionar encontros que valorizem a sociobiodiversidade, possibilitando a troca de saberes e fazeres. “Chegamos a um nível de comprometimento que não temos mais como esquecer a responsabilidade. Ela já faz parte da minha história. E com isso quero continuar dando voz aos povos esquecidos, pouco ouvidos, negligenciados pelo poder público e por uma sociedade cada vez mais consumista e egoísta”, destaca.

“Dessa forma, seguimos no caminho para minimizar cada vez mais os preconceitos e contribuir para o fortalecimento das expressões da diversidade cultural e de um mundo mais igualitário. E mesmo com as dificuldades de incentivo e patrocínios, sempre encontramos bons parceiros que compartilham os mesmos ideais que nós. Há muita gente no Brasil que quer um país melhor e vamos nos encontrando e nos juntando para criar esse cenário.”

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(Foto: Bernardo Guerreiro)

O poder da arte e da alegria

Para ele, a cultura de ódio que avança pelo país é resultado do excesso de frustração das pessoas. “Elas querem se rebelar contra alguma coisa, e se rebelam contra o governo, o vizinho, o negro, o mais pobre. Por isso acho que a gente deve aprender com os povos tradicionais, com a alegria que eles mantêm, com a crença que eles têm nas crianças e no futuro, a humildade, a tolerância maior com o próximo, o saber que cada um tem seu espaço para errar e acertar.”

Juliano acredita nas “outras potências do ser humano”, na potência da alegria, no poder transformador da arte. “A arte nos conecta à alegria, à harmonia invisível de todas as coisas”, afirma, ressaltando a mística do povo brasileiro, tanto do ponto de vista religioso – dos evangélicos aos povos dos terreiros – como das folias, da cultura popular. “É preciso alimentar isso, mas sem intolerância. Porque intolerância causa ódio, e ódio não faz bem a ninguém. E porque estamos falando da mesma coisa, de se conectar com o criador, com a natureza, com as coisas belas da vida, com o amor ao próximo… Quem é o próximo? Somos nós também.”

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Cenas do XV Encontro de Culturas Tradicionais (Fotos: Oliver Kornblihtt)

(*Texto publicado em 25 de fevereiro de 2016) 

Leia também:

Doroty Marques e a Turma que Faz: caminhando juntos por um mundo melhor

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